Com o vento...

Para Cretchu

O dia parecia comum. Meio cinzento, poucas nuvens... De fato era um dia comum. Sim, um daqueles dias que raramente se lembraria no futuro de tão comum que são. Sem nada que alterasse a rotina, por mais estressante que esta fosse. Nada de novo, o sol forte em uma cidade sem praia. Um frio seco em uma cidade tropical. Uma dia sem sentido necessário. Apenas um dia.

E talvez assim continuaria, não fosse a multidão que se formava em frente à estação da Sé. Com certeza seria mais um latrocínio, pensou Leônidas que não mais fazia parte da rotina da cidade. Mais uma vez alguém com uma desculpa sem sentido tira a vida de alguém que provavelmente tinha um sentido a viver, uma família a cumprir.

Certificou-se das horas, dos segundos inclusive, pela força de hábito que não mais lhe pertencia. Infiltrou-se entre as gentes sorrateiro e em silêncio, como fazia na década de noventa, levou a mão ao distintivo, antes de levantar a voz. Mas não havia mais um distintivo e sua voz calou prematuramente. Ele havia se aposentado.

Ao ver o corpo ainda não coberto na calçada, viu que seu bom faro policial começava a enganá-lo. Não era latrocínio. Homicídio, talvez, mas certamente um suicídio. Olhou para o alto, algumas pessoas se amontoavam uma janela. Bom, provavelmente ele caiu, ou fora jogado dali, pensou.

Uma senhora, aparada por um copo de água doce não parava de repetir: eu vi quando ele pulou, eu vi quando ele pulou! E enfim começou a chuva de deduções a cerca do motivo do suicídio. Sim, as pessoas ali naquele momento já se implantavam a certeza de um suicídio.

Por sorte uma viatura chegou. Cobriram o corpo, olharam documentos, começavam a interrogar. Leônidas reconheceu Alberto. Ele era um bom policial, mas sequer o cumprimentou. Certos colegas fazem parte da profissão e não da vida. Quando se perde a primeira, muita coisa segue junto.

A pior coisa em se estar aposentado, é ficar procurando a pior coisa em se estar aposentado. Ora é a ociosidade, ora é a idade, ora são os defeitos dos outros, que começavam a ficar cada vez mais em evidência. Agora, do lado dos comuns, os procedimentos policiais pareciam defeituosos. As pessoas pareciam defeituosas. Mas onde estaria o defeito de fato? Em Alberto, na corporação, no povo, no corpo que caiu?

Caiu!!!

Gritos de horror começavam a contaminar a multidão que ignorava o corpo. Leônidas não compreendeu, a princípio, mas olhando para trás, viu uma outra multidão se formando. Outra pessoa havia caído. Outro suicídio? Haveria relação?

Há menos de uma quadra dali, desta vez uma senhora de uns cinqüenta anos de idade. Só agora Leônidas percebeu que não pode avaliar o corpo anterior, já que este caíra literalmente com a cara no chão. O pessoal da mídia escrita, falada, começava a aparecer. Um adolescente tirava fotos pelo aparelho de telefone. A notícia de dois suicídios logo, logo seria manchete nos jornais, nos tele-jornais.

Dois não, três!!! O velho policial abara de ver alguém saltando do prédio próximo. É estranho ver alguém morrer assim. Ele que já vira tanta gente morrer, inclusive um, mais por suas mãos que por sua vontade. Mas ver alguém se matar assim, sem um motivo que se mostre de imediato, é muito estranho. É como ver uma história inteira caindo pela janela.

Era outra mulher, um tanto mais nova, ficou sabendo de Adalberto, visivelmente transtornado. No transtorno ele o reconhecera. É preciso saber o que está acontecendo. Seria alguma combinação, um suicídio coletivo, alguma seita? Terrorismo?

Era muito pouco tempo para deduzir e outro corpo caía, agora há duas quadras de onde estavam.

Pela vitrine, numa loja de departamentos, viu pela tv a notícia de doze pessoas suicidando na capital. Entre eles, um padre e um conhecido comunista. Adalberto começou a chorar, mas disfarçou e seguiu em direção a um prédio onde algumas pessoas tentavam em vão segurar um senhor que ameaçava saltar.

Caiu entre um carro e um curioso, que provavelmente também morrera. A histeria começou e noção de tempo se esvaia com os minutos eternos. Leônidas tentou traçar paralelos, investigar. Não importava sua aposentadoria, era necessário saber.

Interrogou algumas pessoas, mas no pânico ninguém é confiável. Alguém na avenida, em frente a um lote baldio subiu no próprio veículo e pulou, mirando a cabeça no chão. Ele morreu ali, pulando de menos de dois metros de altura. Agora era Leônidas que começava a ficar histérico. Mas era preciso Ter calma. Ser forte.

Olhou as aglomerações formadas em volta dos corpos e percebeu um estranho zig-zag. Sempre um corpo de um lado, outro do outro lado da avenida. Contando com o que pulara do carro.

Seria possível deduzir a próxima vítima? Haveria uma próxima?

Pensou em Deus, mas não mais sabia rezar. Sentia o peso do descontrole.

Ouviu gritos, olhou para o lado certo da rua. Mais um corpo ao chão. Não teve dúvidas e seguiu para prédio seguinte. Estava em construção. Pensou em ir para o próximo, mas não se conteve. Resolveu subir.

A idade em nada lhe ajudara. Em bem pouco tempo se cansou. Mas não desistiu. Do alto pode perceber que, com exceção do que pulara do carro, a altura era a mesma nos outros caso. Assim, faltava apenas mais um andar.

Subiu e percebeu que neste andar os apartamentos já dispunham de portas. Mesmo estando tudo deserto, e ele bem sabia disto, teve medo. Não sabia o que poderia encontrar. Lembrou de sua primeira e catastrófica missão. Pensou em chorar. Pensou em Fabrícia, sua esposa.

Limpou a mente e buscou forças para arrombar a porta. Não tinha uma arma consigo. Testou antes a maçaneta. Estava aberta.

Entrou.

Nunca em sua vida sentira tanto medo. Foi a até a janela. Quase dava para ver o sangue pelas calçadas. Teve um momento de alívio e tensão. Não havia nada ali, então o que estava acontecendo?

Porque as pessoas estavam pulando? Qual a relação?

Olhou mais uma vez a janela. Sentiu paz e pulou.

Amargo
Enviado por Amargo em 21/11/2008
Código do texto: T1296203
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