Barril de Pólvora - Parte II

Mormaço na caldeira. Urubus espreitam a carne. Cabeça quente, suor de cachaça. Fogo. A cena prossegue sem variações. Pombos vigiam o movimento da praça. Ratos. Nenhuma brisa. O roteiro permanece, insiste, eterniza, assombra.

Jamais me esqueço daquele cheiro inconfundível de papel recém saído da gráfica. Todos os dias, às quatro da manhã, uma kombi abarrotada de jornais estacionava em frente ao Bar Boa Sorte, esquina da Sete de Setembro com Travessa José Bacha, centro velho de Campo Grande. Era o início de mais um giro com as últimas notícias do Correio da Serra. Aos nove anos, jornaleiro em início de carreira, essa foi a única alucinação que deu sentido à película da minha infância. E com toda ingenuidade que a fase permite, não me restava nenhuma dúvida: o motorista da kombi, um cara alto, barba por fazer, Hollywood no bolso da camisa, sapatos engraxados e ar de intelectual, era o próprio jornalista, que, logo após terminar o trabalho na redação ainda se encarregava de entregar o jornal para dezenas de vendedores que se amontoavam na porta do boteco, na Rua Sete.

Me lembro também do ritual na hora da distribuição. Quando os jornaleiros se organizavam numa fila de espera. E eu era sempre o primeiro a correr: para ser o último. Fazia isso porque não queria perder nenhum detalhe daquela cena. Ficava na retaguarda, como um goleiro. À espera de um contra-ataque. Meus colegas nunca entenderam o motivo que levava uma pessoa a buscar o último lugar. Já que a cobiça geral era por uma posição entre os primeiros, na comisão de frente. E mesmo sem ninguém jamais ter me explicado que jornalista e motorista de kombi eram profissões tão distintas quanto vinho e uísque, foi justamente esse fascínio pelo novo (mesmo na insistência de uma paisagem repetida), que me fez alimentar a idéia de que o jornalismo seria a única escolha capaz de me deixar à vontade para buscar outras trilhas. Sem taxas de embarque, como numa fronteira aberta, isenta de qualquer regra alfandegária, concreta ou abstrata. Imaginava que apenas um “jornalista de raça” poderia ter a mesma sensação daqueles três anos em que passei como jornaleiro: na batida sincopada que dava ritmo aos becos em volta do Mercado Municipal, no dia-a-dia quase sem descanso dos taxistas na Rodoviária, nas histórias da noite sob o relato apurado dos garçons, no delírio surrealista encarnado pelo submundo de putas e travestis numa esquina da XV e, principalmente, na vigilia diária ao lado de bicheiros, batedores de carteira, sinuqueiros e camelôs.

Ali, freqüentei a escola que mais influenciou na minha formação de fracassado profissional, bacharel em Oratória Alcóolatra. Especializado em Técnicas Avançadas De Como Inventar Uma Mentira Convicente, Persuasão Urbana Para Pedir Dinheiro Emprestado e Boas Maneiras num Botequim. Disciplinas que aprendi a muito custo através de professores PHD em Traquinagem e das negociações nebulosas que acompanhava entre comerciantes árabes, libaneses e turcos, "donos" da babilônia na Rua Calógeras.

Com o tempo, essa mistura entre jornalismo, madrugadas, mendigos pitorescos, vagabundos lunáticos, jogadores compulsivos e bêbados proletários, rendeu uma tentativa simples, humilde e sincera de tentar algo que nunca perdesse o olhar marginal, combativo, barulhento e visceral.

Três

Aos doze anos de idade, passei de jornaleiro para balconista do Bar Boa Sorte, onde fiquei até os dezesseis. O Boa Sorte fechou em 1998. Tive que dar o fora. Precisava assassinar de uma vez por todas a vida lúdica que levava no Pantanal. Organizei os documentos de meu pai, filho de japoneses nascidos na ilha de Okinawa, e consegui um visto de três anos para trabalhar no Japão. A primeira escala foi numa fábrica de máquinas para cassinos, propriedade da Yakuza. Nessa época, fui morar em Nagoya (Aichi), num condomínio de nove prédios chamado Kyuban Danchi, quase todo habitado por estrangeiros. Numa maioria formada por operários vindos do Peru, das Filipinas, da China, da Coréia, do Irã e do Brasil. Mas por causa de um vacilo na hora de montar uma peça, acabei sendo demitido antes de completar o primeiro mês. E por sugestão de um amigo, comprei uma passagem de trem bala para Hiroshima.

Lá, trabalhei onze meses como descarregador de mercadorias no porto. Depois, fui limpar fossa numa empresa especializada e, ao mesmo tempo, fazia bicos num matadouro de porcos. Abandonei esse emprego logo depois de ter sido surrado por um açougueiro brasileiro. Reginaldo, 29, paulista de Bauru, viciado em heroína, que partiu para agressão após uma discussão imbecil sobre corte de carnes. E se não fosse a intromissão de Cláudio Barba, 36, açougueiro mestre, a coisa poderia ter ficado ainda pior: um arsenal de facas "cabo-branco" decorava o ambiente.

Passei dois anos em Hiroshima. Heroína. Cristal. Speed. Primeiro contato. Aditivo energético para os trabalhadores do cais. "O pico é pra agüentar a pegada. Senão, a coisa fica preta. Preta até demais", resmungavam, cada dia mais raivosos.

No dia seguinte à prisão do iraniano que vendia a domicílio, encanei de cair junto (já que sempre nos falávamos pelo telefone). Novo emprego. Desta vez, na província de Shiga. Trabalhei durante um ano numa fábrica de componentes eletrônicos. Serviço corrido, sujo, cercado por vermes de todos os lados. Sem drogas: rotina alcoólatra, pesada. Assídua até o osso. Saquê de noite, cerveja de dia, sem escolha, assinava tudo, todas. Após cumprir três anos de pena (ou sentença, como os operários costumam contar os anos trabalhados no Japão) havia me cansado do disfarce. Imigrante bêbado, brasileiro drogado, bugre metido à besta. Precisava voltar. O sonho de ser jornalista ainda martelava na minha cabeça. E mesmo quando estava preso à fossa mais profunda, jamais pensei em outra coisa.

Antes de partir, um último problema: não poderia voltar para o Brasil sem antes pegar meu passaporte com o leão de chácara da fábrica. Na primeira tentativa, fui completamente desprezado, me mandaram voltar outra hora. Contei a situação para um trabalhador pernambucano, o Zé Galinha, 43, que me passou a cartada. Certeira. "Tu só pega de volta seu passaporte se fizer uma cagada, bem fudida, das grandes". No mesmo dia, estraguei quase 700 aparelhos de fax. Ficaram com tanta raiva que me expulsaram de imediato. Caminho livre. Desembarquei em Campo Grande com dois mil dólares na palmilha esquerda do tênis. Verão de 2001. O cheiro de jornal estava de volta. Dessa vez, ainda mais forte.

Quatro

Assim como o garoto que passa os dias sonhando em ser jogador de futebol para experimentar a emoção de um gol com estádio lotado, uma das coisas que me deixava mais intrigado nos tempos de jornaleiro era saber exatamente qual seria a sensação de um jornalista ao ver o nome assinado numa matéria. Esperei quase dezessete anos para descobrir, de 1988, quando vendi a primeira edição (aos 9 anos de idade), até 2005, quando escrevi minha primeira reportagem, aos 26.

Nessa época, conhecia muita gente que usava faculdade de jornalismo apenas como um trampolim para levar um vida entre bajulações, festas, influências, fama plástica, tapinha nas costas e sorrisos de crocodilo. Ao mesmo tempo, a única coisa que eu realmente desejava era ver meu nome impresso num papel jornal. E sempre que passava numa banca do centro, imaginava o dia em que pudesse abrir a página, procurar uma chamada e, de repente, ao pé do título:

Danilo Nuha.

Quando isso aconteceu, num domingo de manhã, sob o calor mofado da Avenida Afonso Pena, a emoção foi a mesma de um gol. Se não fosse por um detalhe: o estádio estava vazio. E as lembranças daquele fascínio sobre o que aconteceria quando esse dia chegasse, desapareceram assim que terminei de ler a matéria. A pauta era sobre um festival de cultura realizado na cidade de Corumbá, pantanal sul-mato-grossense, fronteira com a Bolívia.

Minutos antes de entregar o texto na redação do mesmo Diário, onde havia iniciado como jornaleiro, sentia como se aquilo fosse a coisa mais incrível do mundo. Mas, em menos de vinte quatro horas após a publicação, percebi que as coisas já não eram bem assim. Ou, nunca foram.

Festival América do Sul revela descaso com artistas locais

Danilo Nuha – Especial em Corumbá

Enquanto tecnocratas do governo estadual descansam em hotéis de luxo. Servidos do melhor uísque importado, empanturrando-se com carne de jacaré e filé de pintado, um senhor negro, magricela, com as roupas sujas e encharcadas, treme de frio ao tentar dormir sob o chão gelado da Praça Generoso Ponce, centro de Corumbá.

Nesse dia, 22 de maio de 2005, os termômetros marcavam oito graus. E tratando-se do calor dantesco que é marca registrada da cidade, ver suas ladeiras cobertas pela neblina (nesse atípico ambiente de frio) causava um impacto estranho sobre o paralelepípedo. A figura do homem, deitado no chão, passava batido pela consumição babaca dos mérdeas em gaiolas de vidro.

Preso às lembrancinhas de Corumbá, dificilmente eles poderiam imaginar que o corpo jogado no meio da praça era do artesão Cássio de Souza, artista responsável pela construção dos bonecos gigantes que há três anos decoram a “cidade branca” durante o evento. Eram pouco mais de onze da noite, quando, num barzinho da Avenida Dellamare, vi um homem se aproximar, aos gritos:

_EU NÃO GOSTO DE VOCÊS! – esbravejava.

_ EU NÃO GOSTO DE VOCÊS! – repetiu ele, num tom de voz ainda mais alto.

De repente, uma frase disparada à queima roupa surpreendeu a todos:

_EU AMO VOCÊS! -

Era o próprio Cássio, que havia acabado de levantar do chão para procurar um boteco e conseguir um trago de cachaça que anestesiasse o resto da noite fria.

Após a brincadeira, puxei assunto e, ainda nesse momento, não sabia que se tratava de um artesão. Foi quando ele me contou que era o construtor dos bonecos gigantes: sem ganhar um centavo do governo, “neca de pitibiribas”.

_De vez em quando, eu ganho um almoço, como aconteceu hoje. Mas é porque eu peço, senão, era capaz de não ganhar nada, mas nada mesmo, nem mesmo consideração – comentou Cássio.

Cássio Rodrigues de Souza nasceu em 1957, no bairro de Cascadura, Zona Norte do Rio de Janeiro. Saiu de lá ainda jovem, passou por algumas cidades até chegar em Manaus, onde aprendeu o ofício de mecânico, tanto de barcos quanto de carros. Sempre antenado, também estudou marcenaria, foi bicheiro e torneiro mecânico. Desembarcou em Corumbá em 1974. Segundo ele, sobrevive fazendo todos os tipos de bicos e, quando surge alguma oportunidade, conserta barcos no porto geral da cidade.

No festival de 2006, o artista organizou uma exposição na Praça Generoso Ponce. Os bonecos – que medem cerca de quatro metros de altura - foram construídos com pano, algodão e taquara. De acordo com seus cálculos, em cada boneco, ele gasta cerca de 270 reais, do próprio bolso.

_ Passo a necessidade que for, mas nunca vou deixar de construir os bonecos. Não tem como a gente controlar um impulso que vem de dentro. Isso é arte! E eu me considero um artista! Bastante marginalizado, verdade, mas, acima de tudo, um artista.

Pergunto a Cássio o que ele acha de tanto dinheiro sendo gasto deliberadamente, a torto e a direito, e também dessas pessoas com a credencial da organização do Festival comendo do bom e do melhor, enquanto ele, ali sozinho, tremia de frio no chão gelado de uma praça. A resposta do artista foi um choro quieto e vergonhoso, uma espécie de grito silencioso pela situação de inoperância dos governos e o não reconhecimento da arte independente.

_Já estou acostumado com isso. Todo ano é a mesma coisa. Mas a minha vontade é muito mais forte do que toda essa mesquinharia política, e esses camaradas de credencial no peito.

No rosto, uma indignação forte, latente.

Cássio é mais um, entre os milhares de artistas independentes que sobrevivem sem lamber o saco de ninguém, sem paternalismos, indicações, nepotismos ou favorecimentos. Rebelde incansável, dono de uma rara potencialidade que ignora qualquer tipo de alienação governamental. Principalmente de gestões calhordas que dominam o Estado desde o século passado, como os chumbregueiros pedófilos do PMDB, do PSDB e do PT. Ratatuia de bandidos da mais alta periculosidade que sempre favoreceu a mesma quadrilha de “medalhões”, geralmente, filhos do latifúndio que se auto-denominam artistas de alguma coisa. Playboys mimados e patricinhas medíocres que nunca largaram a rapadura gorda e bem servida dos incentivos culturais. Dinheiro público maquiado cuidadosamente com nomes e siglas “engana-trouxas” como Rouanet, Lei Fulano de Tal de Incentivo à Cultura, Lei Não sei o quê em prol da arte blá-blá-blá, ou Lei pó-pó-pó do artigo bé-bé-bé do ano trá-lá-lá. Esquemas burocráticos e processos nebulosos que ninguém jamais vai entender.

É mais ou menos como diz João Antônio, mestre brasileiro da literatura marginal: “entra governo e sai governo, e só mudaram as picas, pois o cu continua o mesmo”.

“Porra Danilo! Você é um filho-da-puta! Mas que merda! Sua matéria ficou uma bosta!”. “Cadê as declarações do governador, do prefeito, do secretário de cultura? Você não fez porra nenhuma disso! E essa pauta tinha que ser um dos destaques do caderno. Mas você fez uma verdadeira merda! Impublicável! Vaza daqui seu merdinha! Nunca mais quero ver sua cara! Foca de merda! Por causa de você perdemos a caixinha! Seu bosta!”, gritava o editor, desfigurado, puto de raiva.

Ser expulso da redação, aos berros, na minha primeira reportagem, foi uma estréia que eu realmente não esperava. Mas isso foi só começo de uma série de expulsões que iriam me acompanhar por toda a vida. E quando já estava próximo da saída, ainda sob os comentários irônicos na redação, me veio a dúvida: “Mas por que será que a matéria saiu? Já que estava impublicável, como disse o editor?”.

Obtive a resposta na esquina do jornal, quando encontrei Marcos Bahia, editor de cultura do Diário, às gargalhadas, bebendo cerveja e enrolando um baseado no posto de gasolina da Rua 26 de Agosto com Calógeras. “Cacete rapáiz! Pegou o barrigudo na veia hein!”, disse ele, rindo. Bahia havia sido meu professor de Introdução ao Jornalismo no primeiro ano da faculdade. Nos tornamos amigos quando fiz estágio no site experimental do curso. Nessa época, uma das minhas principais fontes de renda era com a venda de maconha para a “malucada” da Unifezes. Uma vez por mês, sempre às segundas, quando o movimento na boca era mais tranqüilo, pegava um ônibus até o bairro Zé Pereira e comprava um quilo de maconha por cem reais. A planta era cultivada na cidade paraguaia de Captán Bado, perto de Pedro Juán Caballero, fronteira com Ponta Porã, no lado brasileiro. Captán Bado é conhecida pelo preço baixo e pela boa qualidade. E assim que terminavam as compras no Zé Pereira, chegava em casa e separava tudo em pacotinhos de cinqüenta reais.

Tirando o investimento inicial, conseguia lucrar quase seiscentos reais e ainda tinha maconha de sobra para fumar durante trinta dias. Além disso, a grana do “avião” servia para pagar o curso e, ao mesmo tempo, não precisar trabalhar de escravo como estagiário nos jornalecos e assessorias de imprensa lambe-saco da cidade. E como sempre tinha um tempo livre, dedicava a maior parte do tempo aos livros que “expropriava” em livrarias da moda.

Maconheiro nato, Bahia logo ficou sabendo do meu “canal”. E entre uma venda e outra, descobrimos vários gostos e amigos em comum. Saíamos quase todos os dias da redação direto para sua casa. Bahia e a esposa, Clara, jornalista de uma ONG no Pantanal, organizavam várias festas no minúsculo apartamento perto da Santa Casa, próximo à Estação Ferroviária.

O convite para fazer a cobertura do festival em Corumbá tinha sido uma indicação do próprio Bahia, que já havia abandonado o cargo de professor universitário para voltar ao jornalismo diário.

__Ô jacaré, não esquenta rapáiz. Tá certo que você cometeu vários erros, típicos de um principiante afoito. Coisas que você jamais deve fazer novamente. A não ser que você for escrever a partir de uma visão pessoal. Mas a sua matéria até que tava boa. Engraçada, pra falar a verdade. Acontece que eu precisava de um álibi bem forte pra sair fora dessa merda de jornal reaça da porra. E como a chefia não apareceu pra fechar a edição - na madrugada de domingo - coloquei sua matéria sem a bicha do Claudete saber”, me contou Bahia, soltando outra gargalhada:

__E agora que eu tô desempregado, e você sem a grana do frila, bora lá pra casa fumar um e comemorar essa que foi a sua primeira alfinetada.

Acendemos o que restava de um baseado e seguimos numa caminhada pela Travessa Lídia Baís, ao lado da Igreja Santo Antônio.