Vento Sul

Levantou rápido da cama, mas abrir os olhos era bem difícil. Era como se a escuridão insistisse em permanecer. Como que se a penumbra quisesse fazer parte daquela manhã.

Como você esta hoje? Perguntou sua esposa. Era apenas outro pesadelo. Já havia perdido as contas de quantas vezes acordara em susto. Suado, ofegante, cansado e distante. Devia ser alguma doença. Quase se convencia em se tratar. Depois, como ele mesmo dizia, como se cuidar se não há tempo nem mesmo para o próprio tempo?

Assim dizendo, correu para o trabalho. Era estranho, se pegou pensando, o que o estresse faz com as pessoas. Saiu há pouco e sequer se lembrava do que tinha comido no café. Não se lembra de ter escolhido o terno. Parecia que tudo corria numa mecânica maquiavélica, esperando uma auto destruição.

O caminho do trabalho era fosco. Sim, se pudesse definir a cor do caminho, seria uma cor fosca. Nada lhe chamava atenção, o ambiente era opaco em relação ao que ele pudesse sentir. Não diz nada, não lembrava nada, era apenas um caminho mecânico.

Por vezes questionava: eu vou para o trabalho, ou apenas percorro o caminho? Meio que tentando entender se o robô que controlava análises pegava o tubo ou apenas fechava as garras no tubo.

As vezes conversava com este robô, quando ninguém estava vendo. Depois se gargalhava, uma vez até chorou ao contar sobre sua infância no interior.

Não se lembrava do robô na cor azul. Poderia estar com algum problema grave de memória, mas não. Era sabia exatamente como controlar todo o complexo que manipulava o robô.

Um botão a mais no painel lhe chamou atenção. Se lembrava dele, o viu sempre, leu sobre ele nos manuais, mas o que exatamente ele fazia. Deveria perguntar ao coordenador do turno.

Porém a única sensação que sentia era de extrema solidão. Como que se não houvesse ali mais ninguém. Ouvia vozes sem no entanto prestar atenção se haviam bocas a pronunciá-las.

O que mesmo que aquele botão fazia?

Apertou.

O robô girou repentinamente e mandou a garra em sua direção. Ele percebeu bem claramente o metal em sua direção. Mas não lhe houve forças de reação. Esperou a morte, porém sentiu apenas uma ansiedade incrivelmente grande. Suspirou, respirou rápido. Tudo era rápido, iria morrer.

Desta vez abriu os olhos depressa. O dia já raiava e sentiu a luz nos seus olhos. Que susto!

Outro pesadelo.

Como você esta hoje? Perguntou sua esposa.

Sentia que havia se despertado melhor. Estava ficando cansativo todos aqueles pesadelos, a falta de memória. Mas como era final de semana, resolveu ver o mar. Era estranho não se lembrar de quando se mudou para o litoral. Até quis entrar na água, mas sabia que não sabia nadar. Disto se lembrava bem.

Interessante, pensou, mesmo na sombra, seu ombro que queimava com o mormaço. Mesmo protegido, tudo queimava.

Queimava também seu coração, observando sua esposa na beira da praia. Era linda. Era sempre e sempre linda e dedicada.

Aquela dedicação anônima, sem nunca dizer: eu cuidarei de você. Mas ele sentia que ela cuidaria dele, se necessário fosse.

Sentiu-se velho. Olhou bem atentamente, parecia tão nova quanto quando antes, na época de noivado.

Sentiu desejo. Ou ela estava se tornando mais jovem com o passar dos anos, o que não é lógico, ou ele se envelhecia muito rápido. Quantos anos mesmo eles estavam juntos? Não importa, pensou, homem que é homem não se lembra das datas. Mas que ela estava mesmo muito jovem, sim estava.

Levantou-se e percebeu que ela não mais estava ali. Esta no mar, que começou a se tornar bravo.

Ao longe viu ela levantando os braços, com um quê de desespero. Um salva-vidas, pensou, onde tem um salva-vidas.

Começou a correr e sentiu logo o peso da praia, o peso da idade. Encontrou o posto, mas não havia ninguém. Tentou gritar, mas a voz não saia. Foi para a beira do mar, mas lhe faltou coragem de entrar.

Onde ela está?

O dia anoiteceu.

Onde ela esta?

Continuou a correr.

Caiu.

Abriu os olhos com dificuldade. Era outro pesadelo.

O que define um pesadelo, ponderou. Não se lembrava de provocar os sonhos, mas sabia que não os controlava.

Como você esta hoje? Perguntou sua esposa.

Ela sempre o acordava assim. Estava ficando chato. Porque nunca um bom dia, um oi amor? Era sempre a mesma coisa, ladainha: como você está hoje? Ora, com tantos pesadelos quem fica bem?

Onde ela esta?

Esta no banho. Abra a porta! Gritou. Precisamos conversar. Sei que esta me ouvindo, eu ouço o chuveiro. Este quarto não está cheirando bem. Deveria usar menos produtos de limpeza. Alias, deveria passar mais tempo comigo.

O barulho do chuveiro o incomodava. Tudo o incomodava. Incomodava o chato robô que lhe ouvia as lamúrias, a praia sem graça, as pessoas mudas, o barulho inconstante. Lhe incomodava ela questionar como ele estava hoje. Incomodava tantos pesadelos e a ela incomodava aquela maldita e repetente pergunta:

Há quanto tempo seu marido está de coma?

Amargo
Enviado por Amargo em 14/01/2009
Reeditado em 15/01/2009
Código do texto: T1384824
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