Encontro Onírico

Alfred Shelley era um típico comerciante holandês absorto no trabalho e nos lucros advindos dele. Porém ao se dar conta de sua idade e situação civil, descobriu que muitos anos de sua vida decorreram sem importância; há muitos anos também esteve sob o manto lúgubre da solidão e esse repentino discernimento trouxe-lhe uma enorme tristeza. Percebeu a nulidade de seu cotidiano, que não existia mais sabor nos alimentos, que sua sede era insaciável. Tentando reverter esse quadro aflitivo – num impulso, digamos, desesperado – ele pagou para publicar um anúncio no mais popular jornal que circulava, enfatizando sua prioridade naquela circunstância:

"Sou um empresário bem sucedido, calmo, terno. Procuro por uma moça interessada em firmar compromisso sério, que seja sincera, autônoma, inteligente. É necessário que tenha entre 23 aos 30 anos. Mande-me uma foto e uma breve síntese de sua vida! Esperarei sôfrego por pretendentes." Junto à esse tosco pedido, uma foto do mesmo era exposta. Uma semana após ter publicado o anúncio, Alfred Shelley recebeu diversas cartas e para escolher a mulher ideal, era necessário a tranqüilidade do tempo. Bom, isso ele tinha de sobra e por esse motivo não havia nenhum receio em sua vontade de ler as missivas. Então, às 11:30 da noite, ele levou o estoque de cartas imersas numa pequena caixa de TV até o quarto; sentou na cabeceira da cama de solteiro e começou a deleitar-se na expectativa do momento. Mas... uma, duas, vinte, cinqüentas cartas fugiam à todos os interesses dele. Nenhuma das pretendentes agradou-o. Fisicamente – pelo menos é o que parecia – elas não eram aquilo que ele almejava além do que, na própria fisionomia delas, existiam vários sinais da pouca convicção de vida que elas aparentavam possuir. Sobrou apenas uma carta e Alfred, desiludido e desatinado, amassou-a e a jogou para longe de si. Já eram quase 2:00 horas da madrugada e ele não conseguia dormir. Ficou absorto nas dúvidas, nas crises sentimentais... "Tão só!" e repetia isso repetidas vezes. Ele não tinha tantas lembranças acerca de suas ações daquele dia; era tudo confusão e medo. A solidão certamente afetou-o sem piedade e jamais ele voltaria a ser o mesmo que outrora foi. Enquanto lamentava sem parar esse fardo, um vento frio trouxe para perto dos seus pés a carta rejeitada que há pouco havia amassado. Ele a tomou na mão, desamassou-a e, mesmo com os olhos cansados, decidiu lê-la. Viu o nome da remetente, achou-o interessante. Abriu o envelope cuidadosamente e retirou o conteúdo. Junto à carta, como todas as outras, havia a foto, só que entre ambas um pequeno lírio comprimido saiu exalando um agradável aroma. Alfred adorava lírios: coincidência?! Ele tomou-o nas mãos e o levou em direção do nariz; longamente – no regozijo da paixão – ele ficou cheirando a flor. Depois voltou à lucidez e começou a analisar a carta. Utilizando todo o conhecimento de grafia, ele tentou conhecer um pouco do caráter da jovem. Pelas letras ovais, palavras alinhadas e pouco inclinadas, assim como a perfeição de cada frase (eis um trecho especial: "Talvez eu seja a imagem que mais te persegue durante os sonhos, aquela que surgiu desde o nascimento de tua vontade de amar."), Alfred deduziu que aquela mulher era tudo que ele mais desejava no mundo. Felicidade maior ainda foi quando ele viu a foto (uma fotografia simples dos quadris ao rosto). Nas roupas da moça estava visível o gosto dela por tecidos finos e escuros. Mas a impressão mais fascinante foi causada pelo rosto da senhorita. O semblante dela era de uma lividez maravilhosamente perfeita! Dos lábios pouco carnudos e recheados com um batom escarlate saía um sorriso tímido; o nariz era empinado, as bochechas finas... no entanto, foi o conjunto olhos/cabelos que despertaram maior admiração. Negros e reluzentes com um toque de melancolia, assim eram os dois glóbulos oculares. Eles se tornavam mais sedutores devido à longa cabeleira preta e lisa que descia pelas laterais da testa e chegava até os ombros. Mesmo sem ter visto aquele rosto uma vez sequer na vida, Alfred o achou familiar. Após vislumbrar a imagem, Alfred Shelley encontrou o número do telefone da senhorita atrás do envelope, ou melhor, atrás do selo do envelope. Como ele sabia que estava lá?!

Com a mente aturdida devido a esses estranhos fatos, o romântico empresário foi dormir com intento de cortejar a misteriosamente atraente moça. Conseguiu falar, ou melhor, deixou um recado na secretária eletrônica marcando o lugar e o horário; ele queria que fosse naquele mesmo dia às 7:30 h da noite no parque " Horto das Brumas ".

Contente com todos os acontecimentos prolíficos, Alfred sentia uma grande paz espiritual dentro de si. O mal da solidão esquizofrênica se apaziguara. Quando decidiu banhar para poder se arrumar, já eram quase seis horas, mas nenhum imprevisto ocorreu nesse período.

No armário, separou uma camisa branca de renda e um paletó preto, calça azul de seda escura e um par de sapatos comuns. Vestiu-se com esmero e perfumou-se nos pontos mais sensíveis de seu corpo. Montou na moto e partiu para o encontro. A lua brilhava intensamente dentro do véu das nuvens, as estrelas oscilavam pelas brechas no céu. Alfred caminhava pelas brumas do parque e ao longe avistou a uma figura quase angelical sentada distraída. Um pouco nervoso ele aproximou-se da moça de olhar perdido e iniciou o diálogo:

– Você certamente é Mary, pois de beleza tão rara e magnífica nenhuma outra mulher tem o privilégio de possuir!

– Obrigada pelo elogio, mas dependendo do gosto de cada indivíduo, até as mais repugnantes coisas tem seus atrativos - respondeu a espectral moça num tom longínquo e grave, quase num tom masculino.

– É, realmente isso é uma verdade! - confirmou o que havia dito a moça. Ele tentava fixar os olhos nela mas tinha algo incomum em tudo... então, continuando com a palavra disse:

– Talvez a vida seja apenas um conjunto de experiências onde tentamos nos apegar às que mais satisfazem nossos interesses. E tu és tudo o que mais desejo no momento! A moça parecia nada ouvir e continuava distante, porém indagou:

– E após me possuir, como será que tua vontade irá se manter?

– Fazendo coisas novas a cada dia, para não ficarmos na banal rotina semelhante aos outros casais.

– Ha, ha, ha - sorriu com um sorriso muito particular - dizes coisas impossíveis... enquanto falava o som silenciou-se e somente a boca mexia. Alfred assustado já desde o início se lançou ao chão:

– Seja minha amada, eu clamo por tua afeição ó pálida mulher! O que te impedes de ser minha? Vamos me responda! Estou em desespero mental, ajude-me, por favor, preciso de amor, preciso amar!

Então, a mulher finalmente se virou em direção a Alfred Shelley, mas nada disse. Apenas olhava-o nos olhos. Ele olhou incrédulo na face dela. Um cataclismo cerebral ferveu a mente dele e o fez desabar desmaiado. Quando abriu os olhos estava rodeado de loucos, estava num sanatório. Os médicos ouviram a história e mandaram investigar. Descobriram que aquilo tudo que ocorreu foi uma projeção dos desejos de Alfred. Foi ele quem escreveu a carta, ele mesmo se travestiu de mulher para tirar a foto, tudo inconscientemente por isso poucas memórias tinha acerca do que havia feito durante o dia. No Parque, alguns indivíduos que estavam por lá, viram Alfred em monólogos desatinados, gesticulando sozinho e caminhando dum lado para o outro totalmente desnorteado; não havia ninguém com ele naquele dia. É pena, a loucura venceu! Tudo não passou duma viagem sem volta ao recôndito sentimento onírico. Foi tudo tão real! Sim, mas somente na perturbada vida solitária.

Marcell Diniz
Enviado por Marcell Diniz em 07/04/2009
Reeditado em 24/09/2010
Código do texto: T1527268
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.