O MENINO E O SECRETÁRIO DO DIABO

Bosta de gado serpenteando a estrada de barro que nos leva de Santa Cruz à Serra da Vela, zona rural de Sítio Novo. Nas margens, uma paisagem vestida de verde e orgulhosa de céu azul. Aqui e acolá, nuvens desfilando a cor da invernada e os passarinhos de toda a sorte ziguezagueando os seus cantares. Avizinhando o meu destino, a última porteira fechada foi o penúltimo obstáculo da viagem. Penúltimo porque o derradeiro estava espalhado a um passo adiante. Moons em boca de quase uma dezena de gado. Reconheci-os como sendo os do curral que ladeia a casa do meu velho sogro Macedo Barros. Não deixei de reparar no bezerro preto, já quase touro e com cara de poucos amigos. Fundiram-se os dois, gado e porteira, num só entrave. ÔOOO boi, Saaaaai Vaaaca! Heeeaaa! E nada. Até tentei imitar um aboiador, mas o gado impassível, não arredava o pé do meio da estrada. Pensei em pegar um pedaço de pau que estava ao lado da cerca de arame farpado, talvez uma pedra, mas exitei e tenho pra mim que ficaria ali paralisado até que passasse alguém para resolver a parada. E não é que pra minha sorte, uma mulher e uma criança apareceram de repente como que do meio do nada, ou melhor, para ser mais preciso, de dentro da mata. Com naturalidade, mas sei que se rindo por dentro, a mulher foi espantando o gado, como quem espanta moscas de cima de uma mesa. Preguiçoso, o gado foi se estirando e se retirando pela mata.

Não fosse a senhora e eu ficaria aqui, sem muita coragem de passar. Muito obrigado!

Ela, discretamente sorriu. Passei e quarenta e cinco minutos, desde a minha saída de Santa, apeei da moto no alpendre branquinho da casa. Não sem antes notar que perto dali, uma figura estranha, com um menino a tiracolo, olhava fixo para um recanto qualquer da mata. Com um abraço cumprimentei o meu sogro, mas nada perguntei sobre aquela figura gigantesca nos perímetros da casa. Abracei minhas duas filhas que vieram saltitantes ao meu encontro e com sorrisos largos. Minutos depois, me deu na telha que o tal estranho poderia ser um certo Lico, sobrinho de Macedo, que há dois anos estivera por ali, visitando-o. Intuição que logo se mostrou acertada. Lico é seu apelido e confere ao sessentão paulistano de Piracicaba, Francisco, seu nome de batismo, ares de molecagem, acentuado pelo óculos Ray Ban de imitação paraguaia e pela calça de atleta num corpanzil desengonçado.

Ao contrário do famoso homônimo precursor de ordem religiosa, Lico gostava mesmo era de maltratar os animais, como logo pude notar. Havia uma gaiola pendurada num pé de algaroba, próximo de onde os dois estavam. Com a minha chegada, não demorou muito e ele e o menino vieram até o alpendre. Lico entabulou conversa, mas sem tirar o olho da gaiola. Conversa vai, conversa vem... Macêdo lembrou que em sexta-feira da paixão era pecado pegar passarinho. Deixem os bichinhos! Disse o velho com ar de reprovação no olhar. Brincando, arrisquei uma piada: vocês não têm medo das labaredas do inferno, ardendo no lombo de vocês? O menino se contorceu pela pilastra, enquanto Lico soltou uma gargalhada, exclamando: eu sou é o secretário do diabo! Já levei três tiros e mandei dois pros quintos; já fui atropelado por um ônibus desgovernado; tenho umas platinas na perna direita e sou um cabra aposentado. Narrou suas estripulias pelo Paraguai, contrabandeando de tudo um pouco e alguns viagras e disse não ter medo de ser pego pela polícia federal, a quem, em última hipótese, se paga. A conversa ia solta. Falou de como o homem destruía a natureza, da poluição do Tietê, do tempo em que nele nadava. Neste instante, ouvimos um estalo. Lico apontou pra gaiola e exultante disse: pegamos o danado do bigode! O garoto, nu da cintura pra cima, cabelo desgrenhado e descalço, foi sorrateiro na direção da gaiola, onde agora, bigode com bigode se beijavam. Com extremo cuidado retirou a gaiola da árvore e confiscou o bigode do alçapão. Nós permanecíamos no alpendre, aguardando que o garoto viesse nos mostrar a presa. Lico, parecia não caber na alegria dos seus cento e vinte quilos. Mas para a nossa surpresa e perplexidade do Gigante, o raquítico menino foi tranqüilo se dirigindo na direção oposta a da casa, sem sequer olhar para trás. Lico ficou vermelho que nem brasa e quase explodindo gritou: Aqui você não pisa mais, seu moleque fdp! E se pisar eu lhe quebro a gaiola em mil pedaços. O menino fez ouvidos de mercador e saiu balançando-se com a gaiola pela estrada, tendo seu troféu apertadinho na mão esquerda. Caímos na gargalhada e foi uma gozação geral na casa pelo resto do dia, que o traficante de passarinho, a contragosto, teve que aturar, afinal de contas, não é todo ano que vemos um garoto passar a perna no secretário do diabo em plena semana santa.

No ouro dia, bem cedinho, lá estava novamente o moleque armando o alçapão em frente de casa. Danado, tu não tens medo de Lico não? Eu não! Perguntei pelo bigode. Morreu! Não quis comer e amanheceu morto na gaiola. Perguntei por que ele tinha dado um cano em Lico.

- Eu ia bem dar a ele um passarinho que eu podia vender por 5 reais. Ele queria de graça, e de graça, ele que traga o diabo dos infernos e vá pegar passarinho com ele. Nisto, ouvimos um estalo e o bater de asas de um azulão despedindo-se da liberdade.

Marcos Cavalcanti
Enviado por Marcos Cavalcanti em 12/04/2009
Código do texto: T1535218
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