A Cela

O aluguel era mais baixo por causa da janela, ou melhor, por causa da falta dela. Os retângulos na sala e no quarto davam para o concreto do prédio ao lado, por isto, nenhuma luz do mundo exterior entrava no apartamento.

Para disfarçar este incômodo, pus uma cortina bonitinha, presente de minha mãe.

Acredito que foi por causa disto, da ausência da luz do dia, que demorei um final-de-semana inteiro para perceber o que havia acontecido. Foi apenas na segunda-feira de manhã, ao me trocar para ir ao trabalho, que eu vi a meia debaixo da cama, listrada de vermelho e branco; uma meia que certamente não era minha; meia de mulher. Como nenhuma havia estado em casa nos últimos cinco anos, isto significava algo de errado.

Era um sinal deixado para me incomodar, para me dar a certeza de que eu havia sido feito prisioneiro. Ao tentar abrir a porta, encontrei-a trancada. De modo algum consegui abri-la, nem aos pontapés. O telefone ainda funcionava, mas todos os números para os quais liguei caíam na caixa postal, ou ninguém atendia, ou estavam ocupados.

Primeiro, pareceu-me mera obra de acaso, uma ironia. Eu havia me prendido, a porta emperrara, e bastaria que alguém desse falta por mim no trabalho para virem me resgatar. Tirei o dia para descansar, assistir TV, comer um miojo.

Então, passei a reparar nos detalhes. O apartamento era milimetricamente idêntico àquele em que eu vivia, tudo reconstruído com a máxima perfeição, desde a irregularidade das paredes, a desorganização dos meus livros, os móveis empoeirados, os quadros tortos. Este cativeiro era uma obra de mestre, feito para me enganar, enlouquecer-me. Quem sabe algo planejado por anos, ou eram minhas coisas de fato que foram transportadas para outro lugar e, após me doparem, puseram-me aqui. Apenas a meia debaixo da cama destoava. Um sinal. O sinal.

Tentei ligar para conhecidos novamente, sem sucesso. Esmurrei a porta. Gritei. Arrastei móveis em busca de uma fenda, uma passagem que pudesse me levar para fora daqui.

O dia acabava.

Não serei repetitivo ao descrever as semanas e meses que se sucederam, pois meus dias foram iguais, absurdamente iguais, insuportavelmente iguais. Na TV, a mesma programação, sem tirar nem pôr, as mesmas notícias no jornal, o mesmo capítulo da novela. Também não conseguia me comunicar por telefone, ninguém respondia aos meus gritos e murros na porta. Mas de fome eu não morreria, pois inacreditavelmente, toda vez que eu acordava, os itens na minha despensa retornavam ao nível inicial: sete pacotes de macarrão instantâneo, um de café, duas latas de leite em pó, três pacotes de Cheetos, dois de bolacha de chocolate, sal, açúcar, arroz Uncle Benz para micro-ondas, oito latas de feijão, um pacote de sopa, caldo Knorr... E o mesmo ocorria com os mantimentos da geladeira, a embalagem de 523 gramas de coxão mole, a garrafa de Coca-Cola pela metade, os quatro ovos faltando da dúzia, tudo refeito com uma perfeição meticulosa. Alguém devia entrar, enquanto eu dormia, e repôr tudo. Como eu disse, uma obra-prima de prisão.

Depois de um tempo, passei a conjeturar algumas hipóteses:

1 – eu havia entrado numa espécie de fenda no continuum espaço-tempo, por isto, todos os dias eram o mesmo dia, enquanto o mundo lá fora seguia adiante normalmente;

2 – alguma espécie de gênio maligno cartesiano estava querendo brincar comigo, lançando-me numa realidade absurda, testando minha sanidade, violando as leis da lógica e da causalidade;

3 – era apenas um pesadelo e a qualquer momento eu despertaria, todo suado e desorientado, na escuridão do meu quarto, então eu me levantaria, tomaria um copo d’água e seguiria minha vida normalmente, até me esquecer de tudo;

4 – eu havia morrido e este era o inferno, castigando-me por minha preguiça e anti-sociabilidade, ou algum tipo de limbo no qual eu estava preso até ter meus pecados purgados;

E a hipótese na qual eu mais acreditava:

5 – que esta era uma prisão criada por alguém, por algum inimigo ou desafeto meu, assim como num filme coreano que eu assistira recentemente, que desejava me punir por algo que eu não me recordava, e que eu seria libertado após cumprido um tempo, longo possivelmente, ou seria morto ao fim desta pena.

E o que me fazia acolher esta última alternativa era aquela meia de mulher sob minha cama e uma gargalhada horrível que, de vez em quando, eu ouvia pelo buraco da fechadura.

Amanhã, eu tentarei ficar acordado o máximo possível e aguardar meu carcereiro vir repor os mantimentos. Fiz isto antes uma vez, mas não aguentei por muito tempo. Mas, desta vez, vou conseguir. Já preparei uma garrafa térmica de café e vou me sentar à mesa da cozinha e aguardar. Quando meu captor surgir, vou agarrá-lo pela garganta e, antes de quebrar seu pescoço, descobrir porque estou aqui.

Mas, se ninguém aparecer, não me restará nenhuma outra opção do que enfiar uma faca no meu peito, pois só então eu realmente descobrirei se estou vivo, morto ou sonhando.