UMA "VIAGEM" INESPERADA

Há uns dois dias, Mohra havia acabado de ler The legitimacy of Modern Age, de Hans Blumenberg e a idéia acerca da curiosidade humana, "racionalmente orientada", a transportara para uma introspecção intrigante. Em seu modo de pensar, viu-se inserida na natiga tradição cristã, que condena o desvio de únicas preocupações, tidas como válidas para um cristão: a de busca da salvação através do respeito aos valores legitimados pelo culto a Deus,e, esse devaneio ocioso, que a levava a vagar "livre", pelas entrecruzadas ranhuras inopináveis da 'curiositas', dava-lhe um semblante de "pecadora", em potencial. Pressentia em seu mundo intelectual, uma mudança com efeitos dramáticos. Quantos mais estariam agora nessas inquietudes? Veio-lhe à mente uma passagem do livro que a incomodou, deveras: " Desde Copérnico, o homem desce em plano inclinado, escorrega cada vez mais rápido para longe do centro. Em direção a quê? Ao nada." Deixou o olhar se ocupar da imagem que as águas sujas do rio se apresentavam, lá embaixo.

Os motoristas em seus carros velozes, que passavam na larga avenida não imaginavam que alí, estava um ser humano, pensando. Debruçada nos muros de proteção, que acompanhavam toda extensão da ponte, via embaixo as águas seguindo em movimentos rápidos. - Para onde vão? O que levam consigo? Quantos segredos contidos nessas águas estão sendo levados? Sem intervalos, tais pensamentos faziam nascer em si, um gosto pelo refúgio em um lugar qualquer que lhe causasse tranqüilidade. Não se dava conta de que os carros em alta velocidade, atrás de si, promoviam um show de ferocidade e, num instante, um deles descontrolado, lançou-a nas águas sujas do rio. A correnteza era forte e pelo choque que tivera, Mohra perdera os sentidos. Enfim, estava sendo levada rio abaixo. Livrou-se das angústias dos pensamentos sobre as aspirações humanas.

Acordou sentindo que estava sendo induzida a beber um líquido viscoso, de cheiro estranho. Os olhos ardiam, como se tivessem sido queimados. Tentava em vão achar-se naquele lugar. Era tudo muito grande e, a enormidade do lugar, fê-la sentir-se minúscula, insignificante. Não conseguia caminhar. arrarstou-se pelas pedras na tentativa de encontrar um sinal de luz, na esperança de poder sair daquele lugar horrível. Sentiu asco ao ver-se assim, toda lambuzada de uma gosma verde-avermelhada e fétida. - Deve haver um lugar menos úmido que este, mas está tão escuro aqui. Havia pontos mínimos de luzes, espalhados pelo que Mohra sugerir ser o chão e deslocavam-se para todos os lados. Atordoada, não sabia distinguir coisa alguma além desses pontinhos coloridos. Com muito custo, pode perceber que para o lado esquerdo, havia uma elevação de terra e pensou: - Por alí deve haver lugar seco, quem sabe posso até achar a saída deste lugar. Tentou ficar em pé, mas logo percebeu que era impossível. Arrastou-se com a barriga rente à terra úmida e fofa. pensou consigo mesma: - Sempre fui curiosa, mas isso aqui, agora já é o cúmulo!!! Pareço uma lesma me arrastando assim. Os pequenos pontos de luz a seguiam. Em um dado momento de insanidade reclamou, dirigindo-se ao incerto: - Parem de me seguir, que querem comigo afinal?? E, para maior espanto seu, um dos pontos respondeu-lhe: - Não fomos nós que a procuramos, foi você que veio até nós. E se a estamos seguindo, é porque você quer que assim façamos. E se voc~e parar de se arrastar por aí, deixará de nos carregar em seu corpo. Não v~e que é você quem está nos incomodando, invadindo nosso mundo? Mohra esfregou os olhos. - Devo estar louca, não é possível que estou discutindo com pontinhos de luz. Isso é um sonho, um pesadelo, deve ser isso, só pode ser isso, com certeza vou acordar... vou sair daqui já. E, num frenesi, arrastava-se pelas pedras frias, escorregadias. Não sabia aonde ia, mas seguia em frente, ou para trás... Os pontinhos a acompanhavam incansávelmente. - Voltem para trás, saiam daqui seus nojentos! Tentavam empurrá-los com os pés, mas quanto mais se movimentava, mais os pontinhos de luz agarravam-se à ela. Subiu um "degrau", e depois outro, tateando o chão com as mãos doloridas, e podia sentir que este ficava cada vez menos úmido.

A escuridão e o frio do lugar, causavam-lhe pavor, beirando ao desespêro. Por um instante pensou que seria bem aproveitável a presença dos pontinhos asquerosos, mas cheios de luz, a única luz naquele lugar. Agora, percebeu que podia elevar-se um pouco mais e, a dor nas costas seria aliviada. Tentou virar-se um pouco para o outro lado e: - Ahhhhhhhhhhhh!!!! Escorregou pelas paredes de um pequeno abismo. - Essa não, droga! Em vez de sair, desci ainda mais! Tenho que achar a saída deste inferno e... ei onde estão vocês, pontinhos de luz?? Bem, pelo menos saí do escuro, falou Mohra. - Não foi você quem saiu, fomos nós que a trouxemos. Como você é egoísta! Acredita que tudo é você que faz? - Quem está falando? Quem está aí? E, dando voltas em torno de si mesma, Mohra, sentiu mais medo ainda, desesperando-se. E tudo ficou escuro novamente. Continuava ouvindo vozes, diversas vozes, como se estivessem discutindo sobre o seu destino. Começou a chorar e suas lágrimas eram enxugadas por pequenos seres multicoloridos. - Não precisa chorar, Mohra. Nós sabemos como sair daqui e, quando você estiver pronta, sairá, se quiser. Venha, deve estar com fome e sede. Sem saber o que estava acontecendo, Mohra se deixou seguir pelo instinto de sobrevivência e pelo olfato. O cheiro semelhante a queijo assado confortou-lhe. Não estava em outro mundo. Pensava. Ou estaria?, Mas onde? Quem afinal estava alé naquele lugar que ela não sabia onde era, ou o que poderia ser. Mohra não conseguia distinguir nada, nem definir coisa alguma daquele lugar. Uma confusão mental assombrava aquele cenário. - Isso é irreal! Pensava ela, gritava por vezes. Seguia arrastando-se sem saber para onde. Um som, parecido com o de água caindo, aguçou-lhe a imaginação e quis que fosse uma cachoeira. - Se, há água neste lugar, por onde ela for haverá uma saída. Dizia ela em voz confiante. Foi arrastando-se pelo chão e os pequenos pontos de luz a seguiam novamente, como se estivessem encarregados de sua segurança.

Sentiu que alguma coisa voava sobre seu corpo. Podia até sentir o vento causado pelo movimento daquele ser invisível. Debateu-se no ar tentando defender-se do imaginário e assustador ser.

Em um momento, conseguiu definir algumas arestas de pedras, passou a mão sobre elas e notou que eram lisas e altas. - Bem, aqui pelo menos posso ficar em pé, espero. Lentamente, elevou a cabeça, com as mãos acima para poder tatear o que seria um teto. Não pôde permanecer em pé, erea ainda muito baixo aquele lugar. Mais uma vez, Mohra, começou a chorar, tal qual criança perdida dos pais. Levou as mãos no rosto e só então percebeu que entre seus dedos havia uma luminescência impressionante, que poderia servir de lanternas.

Mohra, lembrou-se de uma passagem ilustrada do livro de Barbara Brennan - Mãos de luz - e sentiu-se feliz ao compreender que podia, finalmente enxergar suas "mãos de luz": - Isso é fascinante, maravilhoso, fantástico! Dizia ela.

Agora, um pouco tranqüila, Mohra foi-se arrastando até chegar a uma elevação, que mais parecia degraus esculpidos na rocha. O corpo todo doía-lhe. Num impulso, virou-se para poder colocar as mãos um pouco mais acima de sua cabeça:- Puxa! Que lugar estranho! Pensou. os pontinhos de luz iam "desaparecendo", conforme Mohra is se aproximando mais e mais de um lugar iluminado. O teto era alto e mostrava o reflexo das águas bailando felizes. Quando olhou para baixo, viu uma enorme piscina natural, convidando-a para um bom banho. Mohra, despiu-se e foi entrando na água morna e limpa. Permaneceu alí, por horas, pensou ela, como se tivesse adormecido e esquecido dos últimos acontecimentos, que a levaram para esse lugar.

Pequenos seres invisíveis ajudaram-na a sair da água. Envolveram-na em uma espécie de tecido muito leve, de cor clara. seus pés foram sendo colocados confortavelmente e, pequenas camadas de folhas, ora lilás, ora amarela, rosa, branca. Sentia a carícia, mas não via de quem era.

Como se flutuasse, Mohra seguiu para um salão onde havia uma enorme pedra servindo de mesa e elguns troncos de árvores dispostos no lugar de cadeiras. - Venha, Mohra, sente-se aqui, deste lado. Assustada e confusa com essa voz, que por um instante lhe pareceu familiar, Mohra deu voltas para ver de onde vinha. - Quem é você? Onde está? O que quer de mim afinal? A voz forte, mas calma: - Você escolheu estar aqui. Não importa muito quem sou eu. Importa, sim que você esteja aqui. Mohra sentou-se desconfiada. Um prato de bolinhos de chuva surgiu em sua frente. Lembrou-se das tardes na casa de seus pais, no sítio. Eram os mesmos bolinhos. Comeu-os com gosto de infância. Um pedaço de bolo de fubá salgado foi servido com chá, como sua mãe fazia para ela. Queijo assado. Pão de fornalha. Leite fresco. sentiu o cheiro de fogo no fogão a lenha. - Meu Deus, estou no sítio de meu pai, estou em casa novamente... Essas lembranças iam passando, uma a uma em sua mente, em flash-back. Outras mais que só ela conhecia, iam surgindo de seus segredos. Por horas ficou neste festival de recordações de vida pregressa.

Sua glassomania também era sentida. - Que felicidade, disse Mohra, que alegria é voltar para casa de minha infância, ao meu lar, às minhas raízes, aos meus pais... E assim, Mohra, continuou sua viagem fantástica às saudades de coisas que não voltam mais, a não ser em memórias de saudades.

Uma grande parede abriu-se à sua frente e aos poucos semblantes e vultos foram tomando formas. Ao fundo uma mistura de sangue e fumaça, mostrava o ambiente de uma ou mais guerras. Como se estivesse em imagem tridimensional, Mohra assistia cenas horripilantes. Numa rua, prostíbulos escancarados, possibilitava a presença de diversas pessoas, homens, mulheres, crianças, jovens e velhos. Matando-se, violentando-se. Os risos escarnecidos enojavam-lhe. Sentiu náuseas. Via num gesto, indefinido, uma mulher sendo violada, com as próprias mãos e arrancando de si um feto indefeso, lançado no lixo. Queria fechar os olhos, mas não podia. Estavam perplexos, estagnados.

Cenas e outras cenas se aviltavam diante de seus olhos. Mohra queria virar o rosto, mas não podia, não comandava seus movimentos. Tinha que observar aquelas coisas anti-humanas, que rodavam naquele filme diabólico. Mas pensava:- É meu mundo... isso aí?? Numa esquina qualquer de uma cidade qualquer, poderes podres conquistavam pessoas incautas, com promessas absurdas de bem-estar através de pequenos paelotes brancos, que lhe custavam a própria vida. A ignorância era a soberana desses plamontes. Quando foi forçada a olhar mais acima, viu sinais de grandes explosões abrindo um enorme buraco no céu.

Nos hospitais, cancerosos, aidéticos, mutilados, enfermos de toda espécie de vida e doenças, sofriam dores atrozes. De um lado, via seu pai arando a terra e conduzindo seus poucos animais. Lutando pela sobrevivência no campo, sustentando a cidade. Sua mãe ordenhando e preparando queijos. Viu seus colegas de faculdade, rindo, sonhando. lembrou-se deles com saudades e pensou: - Por onde andarão meus companheiros de lutas? O filme continuava ferozmente. Mohra, desejou pela primeira vez, morrer, diante de tanta solidão, de tanta dor, mas um minúsculo ser gelatinoso apanhou suas mãos frias e colocou em suas palmas uma pedra: - Uma safira amarela. É minha pedra mística, minha "proteção". A voz veio até ela: - Mohra, você não precisa desse arremedo de proteção. Você é sua proteção. Tua força de vontade é mais valiosa que qualquer coisa, desde que você saiba usá-la. Por quê você insiste em acreditar que uma pedra possa dar-lhe segurança? Essa é uma forma de agregar poder. Criar mitos para se resolver. Se você soubesse como esses elementos sentem-se com isso. Sabe, Mohra, as pedras também têm alma e sofrem por sua insensatez. Enxergue a luz que há em tudo. Auras da alma. Não abuse da natureza, mais do que já é abusado. entre em harmonia com ela, Mohra, você e seus semelhantes serão felizes! E o mais importante: entre em harmonia com vocês mesmo. A felicidade e realização é uma subjetividade. Está, pois dentro de cada um. Se quiser, encontrará a felicidade.

A voz continuava se expressando, aconselhando, explicando. Mohra não resistiu e perdeu os sentidos.

As mãos afagando-lhe os cabelos e olhos, por instantes pareceram distantes. A voz, muito familiar, era suave, calma, de uma simplicidade ímpar. : - Acorde Mohra, volte minha filha, eu preciso de você. Seu pai está sofrendo tanto com tudo isso. Nós te amamos muito, filha...

O choro era quieto, triste naquele quarto de hospital. Depois de cinco dias esperando por um sinal de vida, Mohra finalmente abriu os olhos. Viu sua mãe alí ao seu lado, segurando sua mão quebrada, afagando-lhe a testa suturada.

Quis levantar-se, mas logo percebeu que não podia. tinha o corpo, quase que totalmente, cobertos com gazes finas, para proteção das escoriações,e pernas e braços imobilizados, tracionados.

O pai, cabisbaixo, tocava de leve seus pés feridos, com um lenço colorido, xadrez, lilás, amrelo, rosa, branco...

NENINHA ROCHA
Enviado por NENINHA ROCHA em 03/06/2006
Reeditado em 04/06/2006
Código do texto: T168976
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