A SAGA DO ZÉ DO MATO PARTE V

INÍCIO DA SALVAÇÃO

por Márcia Ribeiro




Pai Jacó, depois de ter observado que Zé do Mato estava se aproveitando de sua condição de Pai de Santo para vingar-se da mulher que lhe deu uma pernada, resolveu parar de lhe lembrar do seu compromisso assumido e deixou que Zé do Mato se entendesse com o próprio destino.

Zé do Mato, outrora incumbido de dar prosseguimento ao respeitado trabalho de Pai Jacó, se perdeu pelos caminhos da vingança, esta vilã traiçoeira que corrói a alma mais inocente que pode ter na face da terra.

A Casa de Pai Jacó ia ficando cada vez menos movimentada depois que o pai de santo Pai do Mato de Oxossi voltou de suas férias. Os adeptos já não confiavam mais nas suas rezas e orientações, achando que o seu babalorixá, outrora querido, estava tresvariando.
Depois da aparição da sua ex-colega de Repartição, Zé do Mato se lembrou que também era poeta e danou-se a fazer poemas para serem declamadas no auge do culto, quando as entidades incorporavam. Assim, em plena dança ritmada pelos atabaques, em vez de baixar as entidades de Aruanda, baixava o espírito de Bocage, o poeta boca-suja:

"Olhem só a minha triste miséria
Enquanto em Vulvus só me deram prazer
Burro, voltei aqui pra Terra
Pruma vulva acabar de me foder"

Era delírio, só podia ser. Mal sabiam todos que tudo o que Zé do Mato tinha na cabeça era recuperar o dinheiro perdido e dar cabo da bandida que o atraiçoou pelo cio. Por vezes era encontrado em eternas divagações sobre tudo o que ocorrera em sua vida deste que sucumbira aos encantos de uma mulher.

- Se pelo menos eu tivesse conseguido levar a cabo o tesão que eu tinha por aquela vagabunda! Só de lembrar ainda me dá um frio na espinha. Que mulher gostosa! Aquele cheiro que me deixava doido, mais até do que quando eu pegava as onças. Ah! As onças! Estas sim, nunca me trouxeram aborrecimentos. Somente uma desenfreada carreira vez por outra. Algumas estavam até viciadas (hehehehehe), mal começavam a beber água e já ficavam de rabo empinado, fingindo que nem notavam a minha presença. E eu fui me meter com a aquela mulher maldita. E a desgraçada ainda ficava nos meus pensamentos quando eu me esbaldava com as súditas de Zandri. Ah! Eu pensava nela, com aquela pele de pêssego, os pelinhos arrepiadinhos das coxas. Que coxas, meu Deus! E aquela cara de safada que ela fazia quando se esfregava em mim, com a voz toda melosa me chamando: "vem descobrir o que tem nesta mata, vem Zezão." E ainda dizia: "Zezão! O que é isso apontando pra mim deste jeito? Ai, Zezão, vem me ameaçar com sua carabina, vem." E eu ali, sem saber por onde começar, com a carabina na mão, pronto pra meter bala naquela caverna quente dos infernos.
Agora estou aqui, entregue nas mãos de nem sei mais quem. Até minha mulher, com quem eu fiquei tão preocupado, se arranjou com meu primo. Aquele cabra nunca me enganou, também. Cheio de mais-mais, com uma conversa tonta e eu de olho numa cadela, filha de uma égua que acabou com a minha vida. Até o safado do meu cunhado se aprumou de novo. Eita cabra da peste aquele! Ganhou o povo no bico, agora já é Governador e ainda arrumou um emprego para o chifrudo do marido daquela vaca arrombada de uma figa. Se pelo menos eu tivesse bebido daquela fonte de águas quentes, me embrenhado naquelas bandas de bunda empinada e carnuda, que ficavam se rebolando, mexendo pra lá e pra cá, me convidando ao pecado da carne - hehehehehe. Ah, como a cachorra mexia aquela porção de carnes da boa! Uma tentação! Maravilha! Maravilha! Ai, essas minhas lembranças que me deixam assim, com o fogo me comendo as ventas, com o membro a romper minhas calças, e ninguém para me consolar. E esse bando de pilantras ainda pensa que eu não sou capaz de dar uma boa trepada! Mas eu devia ter ficado mesmo no mundo da Zandri. Tá certo que eu nem dava mais conta do recado na forma como era exigido, mas elas iam entender com o tempo e eu até poderia ensinar para elas a importância de ter um avô por perto. Como devem estar todos os meus filhos, meus netos, quem sabe? até bisnetos e...

- Zé do Mato, ô Zé do Mato!

- O que é isso agora, meu Deus?

- Num se alembra mais do véio, seu cabra safado?

- Ara! E como eu haveria de não me lembrar, Pai Jacó? - respondeu desconfiado, tentando se recompor das safadezas que corriam soltas em seus pensamentos.

- Zé, mô fio, suncê tá cada vez mais longi da sua missão, Zé. O véio aqui te socorreu, deu acolhida, Zé. E suncê esquece de tudo pra pude se vingá do que tu mesmo causou, homi? Num fosse tua fraqueza e tua vida tinha seguido o rumo certo, mô fio. Oia pra tua vida até agora, homi. Tava inté num caminho certo, Zé. Bastô a muié aparece e suncê se perdeu de novo. Zé, suncê só tem uma saída agora, mô fio.

- O que eu vou fazer agora, pai Jacó? Essa cachorra tem que pagar o mal que me fez. Quero de volta tim-tim por tim-tim do que ela me roubou, inclusive meu sossego. Tudo, Pai Jacó.

- Suncê já teve de tudo nas mãos, mô fio. Inté a chance de sarvá a alma da muié perdida e fez tudo do contrário. Zé, se suncê num fizé o que tá no seu destino, vai se haver no fogo dos inferno. Ainda tem tempo, homi.

E Zé do Mato ficou ali, perdido nos seus pensamentos e refletindo sobre como estava perdendo cada vez mais a chance de morrer em paz, perdoado por tanto mal que causara quando não mediu as conseqüências dos seus atos..

As últimas palavras de pai Jacó tocaram fundo em seu coração e Zé do Mato prometeu a si mesmo dar cabo de tamanha sede de vingança. Dinheiro já tinha em quantidade suficiente, já que obrigara aquela filha duma égua a lhe devolver mais do que havia sido roubado da Prefeitura. Já tinha a mulher em suas mãos e com a chance de salvar a si mesmo e a bandida, que, no fim das contas, se enrascava cada vez mais por causa da vingança dele.

Zé do Mato, na verdade, estava, de novo, fazendo tudo errado na sua vida por causa da mesma mulher. Desperdiçando cada dia de sua velhice, que poderia ter sido melhor aproveitada praticando o que realmente lhe salvaria das garras do capeta ou do inferno da própria consciência.

- Mas o que fazer agora, meu Deus? Já nem tenho mais como pedir aos orixás, aos santos que tanto já fazem por mim. Alguém me dê uma luz, um alento, me mostre o caminho de volta para minha salvação.

Depois de alguns dias longe de tudo, completamente afastado de suas obrigações, Zé do Mato mandou chamar a vigarista, que agora não era mais tratada como a vagabunda que lhe seduziu para roubar o dinheiro da Prefeitura.

- O que aconteceu, Pai do Mato? Nem adianta falar de novo, pois eu ainda não consegui realizar o seu último pedido. Preciso de um prazo maior. Aquele sítio custa muito dinheiro e eu ainda nem terminei de pagar a prestação da Mercedes.

- Hoje eu não vou invocar o Preto Velho. Eu só preciso que você escute com muita atenção tudo o que eu vou te contar neste momento. Depois de ouvir, vá para sua casa, pense bem sobre tudo que eu te falei e só volte daqui a três dias. Mas quando você voltar, é preciso que já venha determinada a cumprir uma missão: ajudar a nos salvar, para que nos livremos de uma encrenca ainda maior, não com os homens, mas com os céus.

Com os olhos cada vez mais esbugalhados e de queixo caído, a mulher escutava toda a história relatada por Zé do Mato desde o dia em que ela começou com seu jogo de sedução até aquele momento. Assustada com tudo aquilo, ela usou de vários argumentos, recusando-se a acreditar no que acabara de ouvir. Porém, todos os argumentos usados só serviram como um adiamento para, enfim, reconhecer seus próprios erros.

Por fim, a mulher, não tendo mais como negar os fatos diante de tanta veracidade nos detalhes ali revelados, foi agraciada com uma reza do Pai do Mato de Oxossi e dirigiu-se para sua casa, permanecendo três dia e três noites reclusa, como havia sido pedido por Zé do Mato e aconselhado pelo Pai do Mato de Oxossi.

Quando, por fim, ela retornou a Casa de Pai Jacó parecia outra mulher. Zé do Mato a recebeu e, depois de uma longa conversa e de mais algumas sessões com Pai do Mato de Oxossi, ambos deram início a um novo rumo em suas vidas, dedicando-se integralmente às realizações a que estavam destinados.

De um canto do terreiro, Pai Jacó, sorrindo e satisfeito com os feitos de Pai do Mato e Mãe Mirinha de Oxossi, diz bem baixinho:

"Si um rabo de saia
Te pegá, seu matrero
O mió é sacudi as puera
E butá ordi nu terrero"