Cidadela das flores

Era tempo de festas. Os fogos estouravam enquanto a bebida corroia o esôfago. Mas ninguém se importava mesmo. O que de fato contava é que anos mais tarde todos, de uma forma ou de outra, lembrariam as festividades daquela noite. Inclusive eu, que estava por ali de passagem, depois de uma longa estrada percorrida por dias. A inflamação da minha perna esquerda já não me incomodava e a febre havia amenizado de momento. Mastigava alguma coisa que me ofereceriam e segurava firme um copo na mão. Francamente a bebida não era das melhores, mas eu procurava acompanhar o pequeno grupo que me fazia companhia. Eram quatro indivíduos não muito apessoados, mas um tanto simpáticos, e gargalhavam de alguma piada contada entre eles. Não sei bem se era exatamente uma piada, talvez fosse o efeito inevitável de cinco garrafas de cidra. O mais alto, barbudo, segurou no meu ombro, sacudindo-me. Ele tinha a pele sebenta, cor de caramelo. Arreganhou os dentes e senti um leve calafrio. Disse que a dona Clara não viria aquela noite por motivo de indisposição. Sequer conhecia esta dona Clara, mas encenei um ar de lamento. Os outros me cercaram e disseram a mesma coisa, como que para se certificarem do meu gesto. Respondi a suas expectativas com um “que-pena!”. Um narigudo repetiu minha frase em tom alto e os demais fizeram eco. Depois silenciaram um momento para ver novos fogos iluminarem o céu com estrelinhas multicores. Assim terminado o show pirotécnico, dirigiram a mim uns olhinhos de rato e me abraçaram. Senti-me um amigo de anos e tive a estranha ideia de que aquele ato fosse um sinal de boas-vindas. Acreditei que realmente sentissem saudade de alguma coisa, principalmente quando um deles pô-se a choramingar aos meus ouvidos. O cheiro forte do homem com que minha perna latejasse: uma enorme ferida feita a faca comichava. Cocei de leve para que não precisasse gritar. Em breve, a febre voltaria, pois era sempre assim, desde que saí da minha cidade a fim de fugir dos bombardeios. Confesso que fui um covarde por ter escapado antes de ver a última casa ser derrubada por tiros de tanque. Certamente, se alguém mais tivesse sobrevivido ao ataque, me difamaria, e minha alma seria enterrada junto daquela montanha de corpos. Levei de lá, como lembrança da minha covardia, este grave corte na perna esquerda. Foram dias e noites segurando a carne para não deixar rastros. Ainda podia ver e sentir o sangue dissolvido nos meus dedos pela umidade do copo.

Ouvi uma nova explosão e só então percebi que o barbudo estava encostado numa árvore. Cantava alguma coisa triste e era seguido com palmas pelos companheiros. Pediram que eu os acompanhasse também naquela elegia. Abandonei a bebida num canto qualquer e me integrei ao grupo. Ficamos assim uns vinte minutos, até que alguém, de uma casa, nos convocou para que fôssemos participar da cerimônia. Os vagabundos apanharam seus casacos surrados dos galhos de alguns arbustos e seguiram marcha. Hesitei se os acompanharia, mas não seria prudente, pois a noite já ia alta e fria. Entramos todos numa casa de madeira que se inclinava um pouco para a direita com algumas lufadas mais fortes. Não sei dizer ao certo se aquilo pelo qual passávamos era uma porta, pelo menos o marco parecia intacto e ainda resistente. Adentramos uma saleta bastante judiada pelo tempo e pelo descaso. Nos sentamos a uma mesa improvisada, enquanto um homem incrivelmente velho, mas aceso, se dirigia a nós. Francamente esperava que fosse encontrar alguma coisa sobre aquela mesa, em especial comida, pois eu já não me alimentava há dias, a não ser uma ou que outra fruta colhida ou mesmo apanhada às escondidas de algum comércio durante o caminho. No entanto, não ousei comunicar àquele senhor a minha decepção. Procurei ser apenas ouvidos aos seus primeiros pronunciamentos. Começou dizendo o que eu já ouvira antes: que a tal da Clara não apareceria mesmo, pois estava um tanto quanto indisposta. Notei que os demais baixaram a cabeça quase que tocando o peito, como se o comunicado, partido da boca daquele homem, lhes arrancasse qualquer esperança. Ficamos mudos, e o velho me perguntou o que achava desse imprevisto. Não sabia como responder e tremi um pouco, até que o silêncio foi engolido pela explosão de uma das janelas. Nos protegemos com os braços sobre a cabeça. O velho gritou que a ação já havia chegado àquele lugar. Trememos. Uma nova explosão pôs abaixo a porta já frouxa das dobradiças. Estilhaços levantaram do chão como folhas, ferindo meu rosto. Ainda assim, olhei em volta para procurar algum sobrevivente. Todos estavam amontoados à parede como animais amedrontados. O velho encolheu-se, pondo a cabeça entre os joelhos. Repetia, freneticamente, que Clara os abençoaria se ali estivesse. Os outros faziam coro. Fui, então, tomado de uma força, de uma disposição que há muito não sentia. Ergui-me e atravessei, sem olhá-los, as chamas que lambiam o velho marco da porta. Rumei em direção aos campos. Fileiras de corpos formavam barricadas à minha passagem. O ar cheirava à mistura de sangue e óleo diesel. Ouvi estampidos e uivos, ossos se quebrarem como gravetos, árvores em chamas, das quais oscilavam pêndulos humanos, e cinzas alçarem voo como borboletas negras...

Vaga-lumes de fogo passavam por mim zunindo, por vezes feriam minha carne em corte de faca, mas nenhum me atingia em cheio. Parei, girando o corpo sobre meu próprio eixo e estendendo os braços. Caí exausto. Assim fiquei, sentado e contando as poucas estrelas que fugiam à fumaça exalada pelos canhões dos tanques. Tudo silenciou de repente. Não me pareceu haver por ali nenhuma viva alma, senão uma menina de uns oito ou dez anos, empunhando um cesto de flores, cujas pétalas lançava ao vento.

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 27/07/2009
Código do texto: T1721796
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.