A Facada!

Aquela faca ficou me mordendo a noite inteira. Não que eu não soubesse usá-la. Que eu já havia visto milhares de vezes facas crispando sangue por todos lados. Há muito que lido com elas, faz parte da profissão: serrar pequenos ovos de animais. Mas ali, naquele tampo de mesa ladrilhada, o mosaico era diferente, era totalmente novo, como a baba que se renova no canto dos lábios em cada minuto salivar, secando a garganta de uma vida que já ganhou muitos pães, mas que agora se perde em jogatinas com ninfetas de quinze ou dezesseis anos, com o conta-giros ligado, martelando as cinco pontes de safena. Então, eu já não sabia se recuava e recusava a personagem do matador que eu incorporara com aquele vulto branco do meu lado soprando misérias no ouvido, ou se partia pra dentro e estripava o camarada e deixava o sangue espargir pela sala, na mesa, na parede e no sofá novo, bem branco. Assim, eu poderia encerrar toda aquela firula esganada que cortou a vida daquelas quatro pessoas que se engalfinhavam entorno do carteado. “Passa a porra do trunfo, se não chulapo tua cara de rebordosa babaca com dois tapas bem dados”, gritei. Houve um não sei o que e tudo que estava à volta se turvou. No dia seguinte, acordei, andei pelo salão e a vista estava mais nítida. Não havia sangue em volta, nem dinheiro sobre a mesa. As cartas também não estavam por lá. Fui à cozinha e abri a gaveta, as facas estavam todas arrumadas e na pia havia uma garrafa de Uísque cheia, fechada. Minha cabeça martelava um enjôo. Corri para o banheiro, lá, vi: a privada completamente ensangüentada e dentro dela uma espécie de célula disforme, muito pequena, abrindo e fechando o que seria a boca. Suavemente me dizia: escroto, escroto.

Flávio Corrêa de mello
Enviado por Flávio Corrêa de mello em 21/07/2006
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