O indigente

Quando eu comecei a estudar Anatomia por pouco não desisti; fiquei mal impressionado com o anatômico, uma fedentina dos diabos, corpos e retalhos de corpos espalhados em cima de mesas e dentro de tanques de formol. Tive vontade de desistir, porque achei demais para meus pudores! De qualquer modo, enfrentei e consegui, inclusive, fazer boas dissecações sem tirar bifes como se dizia na época. Cheguei a encaminhar para a Suíça, peça anatômica com estrutura diferente das habituais; na época achei que aquilo era o caminho para a celebridade. O anatomista Vinelli Baptista falava do significado importantíssimo para a nomina anatômica. O tempo se incumbiu de mostrar que as vaidades se esboroam como um castelo de cartas...O mais curioso era o comportamento dos anatomistas...Havia homenagens demagógicas de alguns professores aos indigentes...Placas alusivas, prefácios em livros e toda espécie de baboseiras...A realidade era a seguinte: Os corpos de mortos nos hospitais públicos não reclamados dentro de um certo prazo, eram enterrados como indigentes, ou encaminhados às Faculdades para estudos anatômicos em geral. Havia, segundo voz corrente, e não pude comprovar, um verdadeiro comércio de corpos; gratificações a alguns funcionários desonestos de hospitais e do próprio IML, para que dessem prioridade a tal ou qual Faculdade; desgraçados, mal pagos, com salários de fome, morando em subúrbios longínquos, negociando os corpos de seus irmãos! De fato, isso ainda era pouco, se considerarmos que na Revolução Francesa o índice de canibalismo era grande. De picardia, escrevi uma página irônica chamada o Indigente, o que não deixava de ser uma homenagem, se bem que, anarquista!

Do abismo onde te encontras sorris!

Se de tua vida nada contas,

Foste na morte, muito mais feliz!

Olhavam-te com desdém,

Eras pobre, mendigo, enfim eras ninguém...

A morte te levou, pra lá eu sigo,

Ficaste importante, teu corpo cobiçado,

Num instante mereceste respeito...

Prefácios em livros, bronzes, tudo mais te ofertaram...

Mas, já não há jeito...

Acaso farão viver a quem mataram?