A veste sem costura

Havia um reino onde seus habitantes eram todos tecelões. Não conheciam outra atividade. Teciam vestes do linho abundante cultivado nos campos vastos e generosos. Erguia-se o sol e os tecelões já prontos, fiavam mergulhados em serena e profunda concentração. Suas vestes era o que existia de mais importante em suas vidas. Vestir-se era uma arte; e também uma ciência. Tanto que para cada fase da vida era meticulosamente estudado a tecedura com variações de tramas que se alinhavam adequadamente ao corpo de cada habitante.

Certo dia, distraidamente, um andarilho adentrou os limites do reino e foi ter em pleno centro da sede do reinado. Imediatamente chamou a atenção de todos pois algo incomum se apresentava. O andarilho estava nu; completamente sem vestes. Um coro de Ohhhhhh!!! ... das senhoras e dos mais pudicos senhores, se fez ecoar. As damas escondiam os rostos das crianças na intenção de evitar que elas tomassem conhecimento da real natureza existente por debaixo das vestes. Afinal, nunca naquele reino alguém fora visto sem suas vestes. “Que infâmia!” diziam todos.

O caminhante se manteve parado com o semblante sério direcionado para onde o nariz apontava. Nenhuma piscadela, nenhum gesto facial direcionado para direita ou para a esquerda.

Em meio aos apupos e achaques da turba, uma criança puxando a veste da mãe, observou em voz alta:

— Ele é cego! Ele é cego!

Imediatamente todos pararam com a balbúrdia e focalizaram seus olhares para o calejado andarilho. Estrondosos risos se fizeram ouvir por todo entorno da sede central.

De repente o andarilho sério sem esboçar nenhum traço do mais leve sorriso, disse:

— Saudações a todos. Digam-me, em que região me encontro?

— Adentrastes desapercebidamente no reino dos tecelões — disse uma voz empostada do alto da escadaria da sede.

— É mesmo? Ora, nunca ouvi nada a respeito de tal reino. Como é por aqui? Podeis descrever-me?

— És desprovido da visão por nascença meu caro peregrino sem rumo? — indaga a voz.

— Sim sou. Nunca vi a luz do sol nem das estrelas. Não sei que cor tem o céu. Nem ao menos tenho conhecimento do que possa significar isso que chamam de cor.

— E como podemos lhe descrever algo ao qual não tendes e nem podes ter nenhuma referência visual?

— Mas eu posso sonhar. E é nos sonhos que busco minhas referências. Certa vez sonhei que estava em queda livre como uma pedra que despenca dos rochedos. Ao cair, senti minhas costas cravadas por várias formas pontiagudas tão finas como agulhas. Alguém então me disse que eu havia caído em cima de um roseiral. E que todas as rosas ali plantadas eram vermelhas.

Dessa forma associei a dor profunda com o vermelho das rosas.

— Mas que forma estranha de ver as coisas! Porque tem que ser através da dor? Porque não através do perfume? — redarguiu alguém na multidão.

— É fato, concordo. Porém quem me garantiria a autenticidade do perfume? A dor a qual me refiro não é exatamente uma dor física, mas, é a que me deixa consciente. Consciente eu “vejo”; e “vendo”, sei distinguir sonho de realidade.

— Essa é boa mesmo! Como pode você sendo desprovido da visão distinguir o que é sonho e o que é realidade?

— Você que tem a visão, e que pelo visto sabe bem discernir o real do sonho, poderá, talvez, entender o que tentarei explicar — disse o andarilho.

— Ótimo, então explique-me; sou todo ouvidos e olhos... E a multidão desabou em gargalhadas após essa irônica e mordaz resposta.

Sem se abalar, o peregrino calmamente expôs suas idéias:

— Amigos, nesta existência, nasci sem poder ter o privilégio de enxergar; ver o mundo em todo o seu esplendor com sua rica natureza; mas nem sempre foi assim. Houve uma era muito antes de nascer e morrer, em que minha visão era total e perfeita. Tudo e a todos minha visão alcançava e penetrava; tal era esse dom que com a simples pressão de minha vontade, poderia aprofundar-me tanto micro como macrocosmicamente qualquer recanto de vida; maravilhava-me descobrir mundos em uma partícula atômica; depois dava saltos visionários que abrangiam os quatro cantos do infinito macrocósmico. O alcance dessa visão não apenas enxergava mas criava vida, criava mundos.

Porém em certa ocasião voltei meu dom para um domínio onde a visão que tive foi de meus próprios olhos olhando a mim mesmo. Enamorei-me do que vi; e o que vi fez surgir em mim um sentimento que nunca houvera experimentado: o poder. E do poder veio a vaidade e da vaidade algo endureceu no âmago do meu ser. Nasceu a centralização em mim mesmo. Isso afastou-me da luz. Ficar cego foi uma questão de tempo. Eu que só a eternidade conhecia, perdi algo que vocês tentam copiar mas não atingem: a veste sem sutura.

— O quê! Você possuía a veste sem costura? Estamos tentando há séculos! Nossos antepassados deixaram-nos indicações e diretrizes escritas em longos livros; escolas surgiram para ensinar várias gerações mas nossas melhores vestes desfiam com o tempo e perdem sua alvura. Conte-nos qual a técnica, o conhecimento para confeccioná-la sem que um só fio se entrecruze na costura? Mas espere... você acabou de dizer que nasceu sem a faculdade da visão. Como então pode dizer, que nem sempre foi assim?

— Em meus sonhos, eu posso enxergar. Só que as visões são de uma realidade que vocês não enxergam. Para mim é tudo muito claro; para vocês é como se fossem todos cegos.

— Então você poderá nos ajudar a tecer a veste sem costura.

— Minha única ajuda pode ser ensinar a vocês aquilo que vocês mais temem.

— O que nos poderia ser tão temeroso além do fato de nossas vestes não perdurarem muito tempo?

— A vossa nudez. Enquanto não abrirem os olhos para o que as suas vestes na verdade escondem e não simplesmente cobrem, será em vão toda essa cultura tecelã. O que na verdade chama de vestes, não passa de trapos, andrajos de uma vergonha “civilizada”.

Dizendo isso diante de olhares boquiabertos, desabou ao chão duro como rocha.

Ninguém se mexeu um milímetro por aquele corpo estatelado.

Então a criança se aproximando disse:

— “Ele voltou a enxergar”.