Amor incorpóreo

"Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada."

Camões

Metódico. Perspicaz. Perfeccionista ao extremo. Brilhante. Assim era qualificado o doutor Sato pelos seus companheiros de profissão. Mas não somente por eles, pois a sua fama o precedia desde os dias de estudante, ainda na infância. O pai, médico japonês que migrara no período pós-guerra, era exigente em educar o pequeno Matsui Sato, que desde cedo se mostrou perfeito para a medicina, pois possuía a capacidade analítica de escolher o melhor e mais curto caminho até alcançar a perfeição, e aprimorar-se nele ao extremo. Sato refletiu, por exemplo, que para ser um médico melhor que o pai, não poderia deixar que as suas emoções o atrapalhassem, então decidiu eliminar qualquer vestígio delas de sua personalidade. Tornou-se um ser exclusivamente racional antes mesmo de começar a conviver em sociedade. Na escola, era sempre visto com desconfiança pelos outros alunos, pois tirava as melhores notas sem conversar ou enturmar com ninguém, nem com os professores. Parecia não lhe fazer falta. O mesmo aconteceu na universidade e na profissão.

Metódico. Perspicaz. Perfeccionista ao extremo. Brilhante. Eram as qualidades que gostaria que o pai reconhecesse nele quando era pequeno. Mas, com o passar dos anos, foi perdendo cada vez mais o interesse pelo que os pais e outros parentes pensavam. Depois de formado, mudou-se para outra cidade em que poderia ascender rapidamente em sua carreira e só voltou a ver os pais em seus funerais. Novamente, a escolha racional de Sato foi afastar-se completamente de toda a família, pois estes não acrescentariam nada a sua carreira.

Bela. Atraente. Sensual. Perfeita e discreta. Eram os atributos exigidos para a acompanhante de luxo contratada para acompanhar o novo diretor do Hospital Internacional em seu coquetel de boas-vindas. Na agência, Paula era a que mais se encaixava dentro do generoso cachê oferecido pelo cliente. Apesar de ter sido escolhida pela internet, preparou-se de tal forma que faria qualquer primata do sexo oposto parar de respirar por alguns segundos quando a visse. Afinal, um cliente satisfeito é um cliente fiel. Foi apanhada pela limusine em sua casa, e no carro conheceu o seu homem: meia-idade, tão sério quanto imponente, bonito. O jogo de sedução de Paula pareceu dar certo, pois a noite inteira todos os homens, incluindo o diretor, não tiraram os olhos de seus dotes e decotes. Paula conseguiu o que queria: dormir no apartamento de Sato. A noite foi um sucesso para ambos.

Bela. Atraente. Sensual. Perfeita e discreta. Não que isto importasse para o doutor Sato, mas havia algo em Paula que causava-lhe um aperto no peito. Era uma sensação nova para ele e, portanto, perturbadora. Incapaz de se auto diagnosticar, orientou-se pelo senso comum dos colegas, que desde o dia de sua promoção não paravam de comentar que ele era um homem de sorte por ter uma companheira tão bela e tão sensual. Diziam que provavelmente apaixonara-se por ela. Com certeza, pensou, ela lhe abriria inúmeras outras portas que ele sequer pensava existir. Após outros encontros, fecharam o que seria o melhor negócio para ambos: o casamento. Não antes dele submetê-la a uma bateria de exames médicos que a comprovassem sem imperfeições para ele. E, enquanto ela pensava estar com sua vida garantida ao lado de um marido apaixonado, ele acreditava poder desvendar, finalmente, os segredos das emoções humanas.

Doloroso. Lento e fragmentado. Mortífero. Foi o casamento de Paula com o doutor Sato. A cerimônia particular não contou com nenhum parente, os dele não foram convidados, os dela não conseguiram vistos para entrarem no país em que Paula imigrara ilegalmente. Sempre pensou que o noivo era tímido, até descobrir que era louco. Certa manhã, acordou em uma cama de hospital, anestesiada. Tentou chorar. Tentou gritar por ajuda. Mas não. O doutor a observava e repassava instruções para os seus subordinados. Paula não entendeu o que havia acontecido, mas começou a perceber que os seus sonhos provavelmente seriam somente sonhos.

Doloroso. Lento e fragmentado. Mortífero. Foi a intervenção cirúrgica que o doutor Sato aplicou em sua esposa. Ele queria localizar o que dentro daquele ser lhe causava aquelas estranhas sensações. Para entender melhor, com o seu cérebro excepcional, o que havia de diferente dentro de Paula, ele precisava senti-la dentro de si. Primeiro, começou com os olhos, e colocou a sua equipe para transplantar as córneas da esposa para ele. Tudo devidamente justificado e autorizado. Todos pensavam que a esposa do diretor do hospital sensibilizara-se com a condição terminal do marido e tentava salvá-lo a todo custo. Era um amor incorpóreo, que aos poucos doava tudo o que tinha: rim, fígado, medula óssea, pâncreas, pulmão. Até chegar ao coração. O transplante foi um sucesso, assim como a experiência do doutor. Tão logo recobrou a consciência após a operação, ele compreendeu. Nos primeiros batimentos de seu novo coração, sentiu um amor incondicional pulsar vivo dentro do seu peito. E esse amor chamava-se Raul.

(texto publicado originalmente em www.jefferson.blog.br em 10.04.2010)