O SONHO DE ÍCARO

Carlos estava pensativo. Não era sempre que ele ficava pensativo, apenas quando se encontrava sozinho, num canto aonde pudesse refletir. Carlos não era muito chegado a reflexões, mas quando o fazia, alguma coisa acontecia – alguma coisa!

O cheiro de suas próprias fezes lhe atrapalhava profundamente, mas num esforço sobre-humano conseguiu chegar a uma conclusão. – Ali! – Ali mesmo no banheiro, defecando, ele chegou a conclusão de que a vida não valia merda nenhuma – ou merda alguma.

Aquilo para ele era desesperador – amanhã poderia morrer e ninguém ficaria sabendo. Não entraria para a História e nem mesmo chegaria a ser notícia de jornal. Ele era totalmente um inútil.

Qual a sua contribuição para a sociedade? – pensava ele – não trabalhava – era um parasita de seus pais – estudava, mais por obrigação do que por convicção, e de resto...

Nem mesmo aproveitava a vida de uma maneira decente. Era o caos.

Carlos terminou tranquilamente o seu serviço, limpou-se apenas duas vezes (o que é altamente insuficiente), e depois apertou o botão da descarga. Ficou observando o seu excremento sendo engolido pelo esgoto e finalmente soltou o botão. Lavou as mãos, olhou-se no espelho – sentiu-se velho, apesar dos seus poucos dezessete anos – ficou encarando a si próprio, profundamente, deixando o tempo passar, quando, subitamente, um estrondo interrompeu-lhe os pensamentos.

– Carlos! O que você está fazendo nesse banheiro? Já faz mais de meia hora que você está aí!

– Já vou, já vou.

– Eu tenho que tomar banho para ir trabalhar, vamos!

Carlos saiu apressadamente e foi para o seu quarto. Primeiro pensou em colocar um CD do IRON MAIDEN, mas depois mudou de idéia. Não conseguiria refletir ouvindo heavy metal – impossível conciliar coisas de natureza tão extremas. Chegou perto da parede e começou a dar cabeçadas... De repente, sentiu-se um panaca. Um verdadeiro panaca!

* * *

Vestiu uma calça jeans, um par de meias, um par de tênis, uma camiseta preta, deu uma agitada no cabelo e saiu. Desceu correndo as escadas e dirigiu-se à casa de seu fiel amigo Reginaldo.

Reginaldo era um cidadão respeitado. Tinha um emprego e contribuía com sua parte para o tão falado quadro social. Mas era um sábado e ele estava tranquilamente deitado no sofá, vendo uma revista pornográfica quando a campainha tocou – era o Carlos.

– Porra! O que você faz aqui?

– Eu estou com um problema.

– Essa é demais! Em pleno sábado, o cara vem me dizer que está com um problema! – Vou começar cobrar a consulta.

– Não brinca, que o negócio é sério.

– Então não enrola e diz logo.

– Bem, eu sinto uma estranha necessidade de fazer alguma coisa que fique imortalizada, sabe, ser famoso, aparecer no jornal, Coisa assim, entende?

– Só isso?

– Só.

– Fácil, muito fácil. Tem várias maneiras: saia por aí e comece matar todo mundo que vem a sua frente. Você vai aparecer em todos os jornais – “Assassino Débil Mental...”

– Você não entendeu que o negócio é sério. Eu falo de algo positivo. Veja bem, reflita comigo...

– Cuidado..., quando você reflete...

– ... veja bem, você tem esse emprego aí, mas não tem futuro algum; pode ficar nessa a vida inteira. Sempre a mesma rotina, os mesmo hábitos. Tudo isso é tedioso, cara. Eu não quero entrar nessa, preciso fazer algo para me realizar.

– Tudo bem, tá certo. Mas o que eu tenho a ver com isso?

– Nada, nada, eu apenas pensei que pudesse contar com você.

– Olha, sinto muito cara. Deixe os conflitos de lado.

– Valeu cara.

Reginaldo gentilmente dispensou Carlos que voltou a pensar na situação. – Poderia ser um jogador de futebol, sempre fora esse o seu sonho – jogava bem – mas as coisas nunca corriam bem para ele; poderia escrever um livro, mas também não ía dar certo. Ele sempre foi fraco em gramática e nem saberia o que contar. Por último pensou na música, Sim! Somente a música poderia dar-lhe uma projeção diante da sociedade. Formar um grupo inovador, que mudasse o pensamento das pessoas, onde, mesmo que não fizesse sucesso, houvesse de chocar a opinião pública. Isso mesmo! – mas era preciso dinheiro – muita grana!

Carlos tinha um violão e apesar de não ter uma formação musical de conservatório, tirava suas coisinhas. Podia tocar facilmente um baixo ou uma guitarra. Era apenas uma questão de tempo. Precisava, agora, encontrar pessoas que compartilhassem com sua idéia. Pensou no Wladimir.

* * *

Wladimir estava dormindo. Estava muito cansado, pois chegara tarde da escola no dia anterior e ficara tocando sua guitarra até altas horas da madrugada. Aquela Gibson era um sonho para ele, um esforço de meses até consegui-la. Mas valera a pena! Ele tocava muito bem e gostava de tocar. Agora ele estava sonhando que era Ed Van Halen, cercado de fãs pedindo autógrafos, quando foi acordado por sua irmã.

– Wlá, o Carlinhos está aí.

Com a cara suja de remela ele foi até Carlos.

– Uuuuuuuuuau, o que foi?

– Sem rodeios, eu vou direto no assunto. Você já pensou na hipótese de a gente formar um conjunto musical?

– ... Poxa! Eu estava pensando exatamente nisso. Acredita?

– Bem, eu tenho a minha guita, a gente tem que arrumar mais gente e começar a treinar.

– Falou.

Carlos atormentou os seus pais de uma maneira quase animal para que lhe comprassem um baixo. E exigiu que fosse Fender, e um amplificador Marshall. Finalmente, antes que ficassem loucos, seus pais lhe atenderam. Restava agora um baterista. Carlos pensou no Jorge.

* * *

Jorge, de início, não foi muito com a idéia de Carlos, mas prometeu pensar no assunto. Um dia, lendo um jornal – logo ele que não era muito chegado a leitura – viu um anúncio de venda de uma bateria quase de graça – um preço do além! Jorge foi lá e comprou a batera. Com uns dias de treino ele já estava bamba.

O sonho estava começando. Toda tarde de domingo Jorge, Carlos e Wladimir se reuniam na casa do primeiro – para infelicidade dos vizinhos – e tentavam tocar alguma coisa. De início, músicas de outras bandas, depois eles começaram criar coisas próprias.

Mas ainda estava faltando alguma coisa. Um vocal! Alguém que como os três, compartilhasse das mesmas idéias. O Valter!

Valter estava deitado no sofá com a Angelina Jolie, quando o carteiro colocou uma carta por debaixo da porta. Valter, que estava deitado no sofá com Angelina Jolie na cabeça, afastou-a dos seus pensamentos e foi pegar a carta. Era do Carlos Murray. Observou o carimbo, abriu o envelope e leu o que a carta dizia. – Apesar da horrível letra, ele conseguiu decifrar que Carlos sugeria que ele fosse vocal do seu grupo.

Valter pensou um pouco. Ele não tinha uma voz perfeita para a música, mas, pelo menos não era tão grave como a de seus amigos. Talvez, chupando bastante limão, ele chegasse perto da perfeição.

Pegou uma mochila, encheu de roupas, vestiu-se com o tradicional uniforme – calça jeans, camiseta preta, tênis e uma jaqueta – e foi para a Rodoviária pegar o ônibus para São Vicente.

* * *

Reunidos na casa de Jorge, o agora quarteto, começou a confabular.

– A gente tem que, de início, tocar músicas de grupos consagrados, para depois, então, entrar com tudo – observou Valter.

– Descobriu que a merda fede – concluiu Jorge com sarcasmo.

– Vamos tentar arrumar algum show, sei lá, alguma coisa assim, para que possamos tocar para algum público.

– Já sei! – arriscou Wladimir – a gente tenta dar um show na Concha Acústica e toca músicas do Van Halen, Judas Priest, Iron Maiden, Black Sabbath, Scorpions, etc.

– Então, antes, treinemos. Ok?

– Okei – todos.

* * *

Foram muitos dias de treino. Valter teve que aprender inglês em tempo recorde (se bem que ele apenas decorou a letra das músicas). Depois, conseguiram que a Prefeitura de Santos colaborasse com eles, fornecendo a aparelhagem de som para uma apresentação na Concha Acústica.

Foi uma apresentação memorável! Algo sobrenatural! Logo, eles foram convidados para fazer uma gravação num estúdio, e posteriormente, devido a qualidade, gravar um CD.

Wladimir tocando de uma maneira infernal; Carlos tirando tudo de seu baixo; Jorge com um ritmo alucinante; e Valter com uma voz diferente e penetrante! O primeiro CD foi uma paulada. A crítica toda caiu matando. Para alguns a letra das música era considerada obscena e vulgar; para outros, a parte instrumental era ardente e marcante – mas o fato é que eles conseguiram vender mais de setecentas mil cópias em apenas três meses!

Aos poucos eles iam se consagrando. No mundo inteiro só se falava neles! Seus shows eram inesquecíveis. Em seis meses, novecentos milhões de CDs vendidos em todo mundo. A crítica dividida e cada vez mais fãs. Convites para apresentações do Japão até a Etiópia, da Rússia ao Canadá. Fãs Clubes inéditos no Afeganistão, Marrocos, Coréia do Norte, Cuba, Nicarágua, Chile!

Era a glória!

* * *

Central Park lotado! Mais de sete milhões de pessoas para assistir o grupo SIGMA. Oitocentas mil toneladas de som. A melhor música do mundo – uma mistura de Heavy Metal com música erudita. Gente que guardava o seu lugar há mais de um mês, acampando nas proximidades.

Na hora marcada Valter entra primeiro, saudando o público.

– Yeah, thank you!

Depois entram os demais e começaram a cantar. As músicas eram em diversos idiomas: inglês, português, latim, hebraico, sânscrito, ucraniano...

Aí os solos. Primeiro Jorge.

Jorge começou bater com toda força, exalando um cheiro de suor capaz de matar alguém – na verdade, muitos desmaios foram verificados nessa hora – um solo de 35 minutos que culminou com a quebra de umas baquetas. Com a quebra de uma das baquetas na cabeça de um segurança. Ele atirou a baqueta em direção ao público, mas o tal segurança interpôs-se, acidentalmente. A baqueta partiu-se ao meio e comentou-se que a vítima teve traumatismo craniano, devido a velocidade com que o projétil foi lançado.

Depois o Wlady.

Wladimir fez misérias com sua guitarra, deixando todo mundo com a boca aberta – e eram sete milhões de bocas! Só não fez chover – muito embora tenha ameaçado uma fina garoa. Tocou até com a orelha. Deixou o palco com enormes aplausos para dar lugar a Carlos.

Carlos entrou no palco e observou o público. Agora ele estava na História. Ele, considerado o melhor baixista do mundo, pela sua maneira inovadora de tocar. Ele unia técnica e criatividade da melhor forma possível. Valorizou magnificamente o baixo, como instrumento, tornando- tão importante quanto a guitarra.

Saudou a massa.

– I’m here, Ok.

Fechou os olhos e começou a puxar as cordas de seu baixo, com uma rapidez fantástica, trocando a posição dos dedos, causando um som mágico. O público delirava...

De repente, um tiro ecoa da platéia e atinge bem a testa de Carlos. Ele cai no chão, leva a mão à testa e percebe o sangue.

Sua mãe chega perto dele e diz.

– Você está louco moleque! Onde já se viu ficar dando cabeçadas na parede!

Carlos estava desconcertado. Procurou o público e não lhe encontrou. Estava em seu quarto com a cabeça sangrando. Sua mãe lhe fez um curativo, depois lhe ofereceu um copo de água com açúcar. Ele rejeitou.

Sentou-se na cama, pegou um CD do Iron Maiden e começou a ouvir a todo volume – para infelicidade dos vizinhos – sentia-se bem assim. Olhou-se no espelho e sentiu-se jovem e falou para si mesmo – Eu sou uma merda! Uma verdadeira bosta!