Existencial cegueira

Levanta. Anda pela casa. Um pequeno apartamento de um cômodo, apenas.

Acende um cigarro. Sentado à cadeira da sala, admira sua mesa. Bitucas e mais bitucas de cigarros correm sob sua tampa, e se estendem pelo piso, pelo sofá, e por quase todos os móveis, instalados porcamente naquele ambiente: Infindável paisagem. A nicotina impregna cada molécula do ar. Alguns copos sujos, soltos, em cada espaço, podem ser observados, aqui, ali.

Perdido. É assim que se sente. Alcança um dos copos sob a mesa: ainda com bebida pela metade. Leva ao nariz. Procura identificar rapidamente o aroma. Bebe: num só gole; ânsia. Usa as costas das mãos para limpar a parte da bebida que preferiu escorrer pela barba mal feita. A garganta lhe arde. Devolve o copo à mesa. (Tudo lhe arde).

Olhando para a cama vê unicamente um lençol sujo, amarrotado. Então murmura:

- “A solidão é fera! A solidão devora!” A solidão...

“Costumávamos cantar essa música”, pensa ele : “A solidão é bicho, a solidão devora, é amiga das horas, mãe... irmã do tempo; e faz com que o relógio alongue o tempo...”. Buscando recobrar parte da música balbucia:

- Faz com que o relógio alongue... o tempo, causando um descompasso no meu coração.

Seu rosto desaba em pranto e soluços. Sente várias ondas cólera percorrerem seu corpo: Engasgos, arrependimentos. Sentia-se amarrado àquele estado inalterado de fatos, parecia que alguém o prendia àquela situação. Não possuía forças para reagir. Falando sozinho desejava pedir ajuda, mas não sabe a quem.

- Estes últimos tempos! Costumávamos cantar essa música... - Relembra

Vai até a geladeira. Vazia. Observa pedaços de pães velhos, espalhados pelas gavetas, levemente mofados. Uma jarra de água vazia ao canto. “Preciso fazer compras”, diz - sem nenhuma intenção de fazê-la.

Olhando para o chão percebe o quanto está imundo, causando-lhe um súbito sentimento de raiva e desespero. Por isso esbraveja:

- Eu não preciso disso! (joga, violentamente, uma cadeira ao chão), eu não preciso disso! (depois o corpo), nem disso! (tenta, com toda força, inutilmente, rasgar o lençol da cama)...

E encoberto por uma sensação de abandono, conclui:

- Eu não preciso de nada! ...

Demora-se alguns instantes parado, imóvel.

Seus olhos estão abertos, mas ele não enxerga nada. Como se estivesse em outro mundo, hipnotizado por um sonho turvo do qual se deseja retornar. Então volta a si:

- Não preciso estar bonito ao acordar. - Pensa e então ri, e continua - Nem perfumado. Não preciso escovar os dentes. Nem me pentear. - Aqueles pensamentos fragmentados e confusos lhe provocam um estado de choro.

Sua vida há muito tempo parecia sem sentido, sem nexo. Perdia-se na dor do rompimento de uma conexão que havia se estabelecido em seu ponto mais sensível, e unicamente pensava: “Depois que ela foi embora, a vida ficou com vergonha deste lugar e resolveu partir também”. Suas palavras refletiam um remorso de uma possível negligência em relação àquele relacionamento, mas que encobria acima de tudo o que efetivamente lhe prendia ali - ele estava submerso em uma energia desconhecida, cuja percepção ele negligenciava.

Em sua dor ele mantinha os olhos abertos, mas não enxergava nada. Aprofundava-se em suas fantásticas conjecturas, à medida que eram ilusórias, perdia-se nelas:

- Você tinha que levar a vida daqui, e também as cores, o perfume?

Olhando o estado lastimável e deplorável que cultivava à sua volta, entregava-se à uma tristeza que mais parecia um boca gigante que tentava lhe devorar. Deixou-se cantarolar:

- “Solidão... de manhã... poeira tomando assento”.

Contudo, o ódio, a tristeza, e o desespero, lhe tomava a razão; e ele explodia em cólera:

- Maldita poeira!

Já não sabia que horas eram, tampouco quanto tempo não saía daquele apartamento. Esquecia-se completamente que existia outras coisas além daquilo. Talvez dores mais profundas que a sua, ou ainda, maravilhas inerentes ao mundo, das quais havia se desconectado. O mundo precisava dele, assim como precisa de cada um, e ele precisava do mundo, assim como cada um precisa. Enclausurado em seu egoísmo, se destruía cada vez mais. Então vai até a janela e põe-se a berrar:

- Eu já tive um amor! Já tive um amor! Morram de inveja. Seus filhas da... Quem já teve um amor? L’amour! O mais doce sabor da existência. Quem? Pois morram de inveja porque eu já tive um.

Desmaia em pranto, novamente, em um ciclo involuntário, de um cotidiano fatídico. Não pode esquecer as noites quentes que ainda incendeiam sua memória. Carinhos. Orgasmos. Gemidos. Confissões, companheirismos, risadas, felicidades, perfumes, aromas, brigas, verões, mordidas, delícias, prazeres.

Esta era a sua impressão sobre os fatos. Entretanto, o seu amor não fora capaz de infundir possibilidade de um diálogo - mesmo que não pudessem mesmo estar juntos devido às tantas contrariedades e complexidades da vida. É bem possível que este homem sequer tenha mesmo conhecido o amor, mas apenas o prazer egoístico tomado da outra pessoa. E sua dor, comparável a de uma criança a quem se tira o brinquedo, e que agora não pode mais saciar o prazer da forma como bem entende. O seu processo de dor bem pode ser entendido como uma expansão complexa da expressão, primeira em nossas vidas - da birra.

Por fim, faltava-lhe, sem dúvida alguma, a compreensão sobre os processos que o impelem à ação (processos psíquicos), tanto quanto do significado e do sentido do amor; que mais que um sentimento, é uma poderosa energia.

Gregório Borges
Enviado por Gregório Borges em 06/05/2010
Código do texto: T2240821
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