AVENTURA NOTURNA *

Raramente frequentava qualquer bar, ainda mais sozinho. Mas a noite estava convidativa, fustigando a solidão para longe, convidando os sós para a festa. Suave noite de verão, bares abarrotados de notívagos a se refrescarem nos seus risos soltos animados pelos teores alcoólicos de sucessivos copos.

A mesa não era a melhor colocada, mas dizem que quem chega atrasado não pode pegar a janelinha no trem... Sentou-se e esperou pelo garçom trazendo um chope de gola larga, sorveu o líquido com a sede de um perdido no deserto, seria o primeiro de uma série. Olhares vasculham o ambiente, perscrutando os espaços, levando a mente a devaneios distantes, além da fixa visão. Como se reconhecendo a área, palmilhando o terreno em que se situava, sentindo o clima. Além dos alaridos dos convivas, entusiasmados em seus grupos, nada a identificar que soasse estranho, tudo perfeitamente reconhecível na alacridade daqueles momentos. Não era lugar requintado, apenas para encontros em turmas, para conversas descontraídas e namoros. O som, pelo menos, não irritava os tímpanos, soava brando, na voz de uma jovem com seu violão em acordes melodiosos. Tudo tranqüilo, ensejando que na companhia de uns goles encontraria um regalo em seu íntimo, imperturbável em seus solilóquios. Ali ficaria em seu mundinho respirando em haustos o sabor da tranqüilidade, não fosse a fisiológica necessidade de urinar, pois tudo que entra tem que sair, e, na contabilidade, tinha mais entradas que saídas, estava cheio.

Ocorre que a demanda por uma mesinha ficava acirrada, qualquer descuido poderia perder o trono, como em baile da vassoura que levam a sua dama e tomam a sua vez, deixando-o na tarefa de buscar nova companhia, no caso de um lugar privativo. E olhava para os lados como quem se vê cercado de ladrões, prontos a darem-lhe o golpe e o deixarem em pé, no desconforto. Mas bexiga contrafeita, cheia como balão de gás, incomodava outro tanto, reclamando alívio. Pensou em deixar algum objeto sobre a mesa, mas qual ? Era calor não levara blusa, nem guarda-chuva pois não tinha chuvas, a carteira – pensamento alucinado, nem pensar, por razões óbvias, seria um donativo. E agora, Mané ? as pernas já se encontravam como a querer reter o perigo de iminente inundação nas calças, que fazer ? Pensou em recorrer ao garçom, já suando nas têmporas, mas o via atazanado com a azáfama de tantos pedidos, equilibrista de bandeja repleta de copos e pratos, e desistia. Poderia, num extremo de generosidade, convidar alguém sozinho para partilhar a outra cadeira, na verdade a única sobrevivente, pois, além da sua, foram delicadamente requisitando as demais, mas o preço de perder a privacidade, exatamente o que buscava, o impedia do convite. Não se tratava de caridade, nem pensar, mas sim de alguém que garantisse a sua própria vaga ameaçada, pensou consigo mesmo: vão se os anéis ficam os dedos...

E assim, resoluto, fez sinal a um homem que bebia apoiado no balcão, sinal convidativo, com a cabeça, querendo ser sutil. O homem olhava para ele e não entendia a sua generosa intenção, com a insistência respondeu à distância, também em acenos, o que parecia ser não gostar de homens, era hétero, mostrava a aliança no dedo... que pavor, quisera fazer uma gentileza e foi tomado à conta de um perdido na noite à procura de um parceiro ? Corou-se de vergonha, pensou até em tirar satisfação, o que poderia ser perigoso, deixando vaga a cadeira. Que se danasse aquele ingrato ! Ainda se fosse um garboso garoto, mas um homem de meia idade... peraí, “garboso garoto”, se estranhava, seria o efeito da oitava rodada de bebidas ? Nem pensar ! Jamais poderia passar-lhe pela cabeça tal deslize, ia se benzendo para afastar inoportunos pensamentos, mas disfarçou. Benzer-se em mesa de bar ? Nem macumbeiro ! Aproveitou a mão já alta sobre a testa para enxugar o suor, porejando, exigindo providências imediatas, recado das partes baixas de seu corpo, tomado de arrepios intermitentes.

Em último caso, iria ao banheiro e perderia a vaga, o que não dava mais é postergar a medida. Se perdesse o posto, discretamente pagaria a conta e tomaria outro rumo, afinal eram ainda duas da madruga e a noite é uma criança, tomaria outros rumos... Até se admirava por tanta determinação, visto que costumeiramente não saía só, era uma novidade, totalmente ousada, que parecia tê-lo conquistado por adrenalina jamais experimentada.

Quando fazia menção para afastar a cadeira, com o intuito de levantar-se, alguém o interpelou delicadamente...

- Posso me sentar, você está só ?

Era uma mulher, nem feia nem bela, igual à maioria, nada que a salientasse, na verdade primava pela sua privacidade, pois a fulana poderia alugar seus ouvidos para assuntos alheios, desabafos e coisas que não o interessavam, mas era também uma alternativa, teria o lugar reservado, além do que, o cara do balcão veria que ele não é um gay em busca de aventuras... somando à contingência de ter que se dirigir ao banheiro com imprescindível necessidade, concordou.

- Sim, estou só, pode se sentar e ficar à vontade, se me permite, vou ao toalete, retorno logo ( espero !)...

- (com voz melíflua) posso pedir uma bebida para a mesa enquanto você se ausenta ?

(levanta a mão para o garçom, autorizando em gestos para servi-la)

- Pode sim, com licença...

Cambaleando no sinuoso trajeto entre as mesas, dava-se conta de sua embriaguês inabitual, constrangendo ocupantes de mesas vizinhas, com um pedido melindrado e envergonhado de desculpas pelos encontrões no caminho, a parecer interminável..

Pensou em perguntar aonde ficava o banheiro masculino, quando presenciou extensa fila, que julgava ser do caixa, mas era exatamente o que temia...

- Ô gordo ! Olha a fila !

( além de ser chamado de gordo, o que detestava, a espera lembrava filas de atendimento na saúde pública, calamitosa !)

Parecia que todos resolveram se esvaziar ao mesmo tempo, porejava a testa em suores frios, fazendo-o passar um guardanapo nas têmporas para conter a sudorese incômoda.

Tentava fugir dali, em pensamentos, esquecendo-se por instantes da premência de desaguar...a mente tudo controla, raciocinava apaziguando o desconforto.

- Ô gordo , a fila anda...

( desta vez não se sentiu ofendido, era o aviso de que chegava, finalmente, a sua vez)

Aquele ambiente simpático, com música ao vivo, iluminação planejada, era o contraste com a visão do banheiro masculino: espaço coletivo para a urina e biombos com portas desajeitadas para as outras necessidades. Papel higiênico servindo de toalha, espalhando fiapos pelo chão, já umedecido pelos afoitos nos respingos de suas armas.

Deixara naquele local nauseante boa parte do que consumira, saía, por fim, aliviado.

Caminho de volta, a procura da mesa que partilhava com uma providencial desconhecida. Esperava que ela não fosse uma chata, a usá-lo como ombro amigo para suas desditas, tudo menos ser um psicólogo na madrugada...

Ao avistá-la, assustou-se. A mesa que tinha antes um copo de chope, apresentava-se sortida com cálices de diversas cores. Como ela poderia ter consumido tanta bebida em tão pouco tempo ? ( nem tão pouco assim, olhava o relógio, ficara retido entre ida, espera , uso do sanitário, mais de uma hora e meia) Ainda assim era muita coisa para uma pessoa só.

- Oi, demorei ?

- Tudo bem, imagino a fila do banheiro... ( falou sem muito interesse)

- Imensa fila ! ( olhando os copos, cinco taças) – Você aprecia muito vinhos ?

- Pois é, vinhos, licores e whiskes .

( espanta-se ao vê-la levantar a mão para o garçom)

- Ainda vai beber mais ?!

- Ora, por que não, a noite é convidativa, tenho sede..

- Eu só tomo chope... mas acho que exagerei, mal consegui chegar até o banheiro...

- (rindo discretamente) – Eu vi a dificuldade... Não quer experimentar um pouco do vinho da casa, é divino !

- (fazendo que não com a cabeça) – Peço mais um chope, vou bebendo aos poucos...

- Olha, assim que o garçom chegar será a minha vez de ir ao toalete, ok ?

- Claro...

Depois de bebericar mais uma taça, levantou-se com desenvoltura, nem parecia uma dama que tinha bebido tanto. Envergonhou-se de sua fraqueza com os chopes no hilário trajeto que fizera até o banheiro.

Olhou o relógio e surpreendera-se com o adiantado das horas, quinze para as quatro da madrugada. Esperaria ela chegar, acertariam a conta e iria para casa, estava satisfeito com sua primeira aventura individual.

Pediu mais um chope, mas já não demonstrava tanto sabor, perdera o paladar, bebia para entreter-se, deixar passar o tempo.

E os ponteiros do relógio já assinalavam quatro e meia, e nada da mulher retornar à mesa, estranhou a demora. Verificou que ela levara seus pertences, uma blusa leve e a sua bolsa.

Achou por bem que fechassem a conta, acertaria seus chopes, ela que pagasse seus drinques quando chegasse...não havia mais o risco de perder o lugar, pois o local já não estava repleto como antes...

( Ao garçom) – Por favor, feche a conta, veja quanto chopes eu tomei...

- Chopes e vários drinques, senhor, estou certo ? Não é esta a mesa 14 ? (falou olhando um marcador existente)

- Sim, os chopes são meus, os drinques daquela mulher que sentou-se aqui...

- Mas ela, ao sair, disse-me que o senhor acertaria tudo....

- Sair ?! Ela não foi ao toalete feminino ?

- Foi este o recado que deixou na recepção, aliás, tenho um bilhete para o senhor...

(lendo desconsolado para si mesmo):

“obrigado por tudo, você foi especial. Não me chateou com suas prováveis amarguras, deixou-me só para pensar nos meus problemas e também me proporcionou um lugar discreto, longe de intrusos que não podem ver uma mulher sozinha, foi um cavalheiro.

Obrigado pela gentileza das bebidas,

Beijos !!!

TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA PUBLICAÇÃO CONTOS DA MADRUGADA, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE NOVOS ESCRITORES, CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, EDIÇÃO MAIO 2010.