CANSAÇO

CANSAÇO

Teve um dia realmente cansativo na lavoura, naquela sexta-feira. A semana estava se acabando e ele só pensava em relaxar, ficar no seu canto. Sua mulher, no entanto, insistia para que fossem ao culto das l7 horas onde se celebraria a entrada do Sábado, já que cultuavam a religião que consagrou esse dia como sagrado e de repouso semanal em lugar do domingo, como a maioria.

Não estava mesmo com disposição quando adentrou ao templo edificado num alto de onde se via o lago lá embaixo. A nave estava ornamentada com flores recentes trazidas pelos fiéis que chegavam mais cedo, e nos vitrais ainda se podia apreciar, em tons vivamente coloridos, os últimos raios daquele teimoso sol de verão que insistia em não dar lugar à noite. A mulher e o filho foram para os primeiros lugares mas, ele avisou que gostaria de ficar sozinho, e se acomodou no último banco onde não havia qualquer pessoa.

O pastor tomou seu lugar ao púlpito, subiu o número 135. Ele abriu automaticamente o hinário e logo se ouviu ressoar os sons do pequeno órgão de pedais tocado por uma velhota de vestido de veludo esverdeado, um vistoso xale no pescoço e olhos grandes recobertos de rugas que lhe estendiam pela face. Reparou bem e a achou vagamente medonha, um pequeno monstro com cabelos tingidos; ela fazia questão de executar duas estrofes do hino como introdução, e só então olhar para o pastor e dar o sinal para início do cântico pela congregação. Estava absorto nessa introdução e confortavelmente inclinado no banco, quando ouviu, lá fora, um estrondo à beira do lago, parecia coisa de grandes dimensões.

De repente já encontrava-se em disparada por aqueles caminhos tortuosos da grama em frente à igreja, e logo para o campo, seguido por pessoas desconhecidas que também acudiam ao fato. Havia uma razoável ladeira a descer até chegar ao lago, mas de longe ele avistou o objeto do estrondo: um pequeno avião havia caído, e encontrava-se metade na água e metade na borda do lago. Curiosos de todos os tipos já haviam chegado e ele, mais um deles.

No interior do avião, vivalma. Ninguém imaginava como aquele aparelho pudesse cair ali. Ele, o mais enxerido, resolveu entrar e examinar tudo. Para surpresa, o que achou fosse uma mulher recostada no banco era nada mais nada menos que uma boneca de louça vestida como gente, um manequim. Estava de lado, e tinha o nariz e algumas pontas dos dedos quebrados. Ficou pasmo ao ver a figura que parecia tão sua conhecida, pois, afinal, em sua cidadezinha havia muitas mulheres bonitas como essa figura que agora contemplava. Ignorou as demais pessoas que estavam no local, parecia que nem existiam, eram apenas sombras nebulosas, o real era só a mulher de louça. Num impulso, resolveu beijá-la numa das faces. Sentiu um sabor adocicado e verificou que imediatamente a pele tomou coloração num tom cor-de-rosa. Ainda dentro do avião ele recuou e sentiu um rumor acima de sua cabeça. Pareciam pessoas que o olhavam de cima e moviam os braços como enormes antenas.

Não se impressionou. Passou a mão na mão da boneca, e esta novamente tomou cor e assim foi se transformando rapidamente. Logo estava composta a mulher acidentada: era uma antiga namorada sua que, agora, viva, se apresentava com os dedos em frangalhos e o nariz achatado olhando-o profundamente como que pedindo socorro.

Apavorou-se, gritou em busca de alguém, não era ouvido, as pessoas acima dele desapareceram, sua voz não saía, tentava arrancar do fundo da garganta um som, algum pedido de socorro. Saiu dali, alçando vôo agarrado ao cabo de uma enxada, vendo a paisagem lá embaixo com a grama, a lavoura e o lago, onde leves ondas refletiam o brilho dos raios do sol em camadas superpostas como um colar de pérolas.

De repente, olhou em volta e surpreendeu-se por não mais estar sozinho. No banco havia várias pessoas sentadas. Os vitrais da igreja permaneciam ainda avermelhados com a luz do sol que já havia se posto mas cuja luz teimava em persistir. O pastor acabara seu sermão, e ele notou que um vento encanado levantava o xale da virago dando a introdução do último hino. Fora vencido, não pudera celebrar a entrada do Sábado.

Samuel Medeiros
Enviado por Samuel Medeiros em 15/05/2010
Código do texto: T2257784