[V - Transtemporalidades: Uivos na Noite Paulistana]

... outro absurdez da minha coletânea "Treze Contos Absurdos"...

A notícia que li ontem à noite na internet, no site da Folha de São Paulo, falava sobre a invasão de prédios antigos do centro da cidade pelos sem-teto. Houve violência, tiros para o alto, bombas de efeito moral — ridícula expressão essa! — gente sangrando! Que tempos, que tempos! Desliguei o micro e fui dormir ainda mexido pela notícia, afinal, o incidente se deu bem próximo de onde morei nos meus tempos de estudante da Universidade de São Paulo.

Amanhece e rolo em minha cama. Pela fresta da janela vejo o chumbo do céu de Penas do Desterro, já é quase dia. Mas é noite fechada neste quadro que acaba de se desenhar em minha mente. Tenho sono ainda, os meus olhos não querem se abrir... os fragmentos desse quadro insistem em juntar-se como num filme. Deito-me de costas e aquieto-me, esperarei as cenas subseqüentes. Em São Paulo, o tempo é outro, ou seja, enquanto aqui amanhece, lá seria por volta de 21 horas, ou talvez um pouco mais. A cidade está envolta numa garoa insistente, típica do úmido clima de serra; vive-se numa época em que as matas das cercanias ainda não foram devastadas pela especulação imobiliária.

Desenrola-se o filme: já vejo a fumaça saindo da água do banho-maria da cafeteira do bar da esquina da Rua Ana Cintra com a Avenida São João. Observo demoradamente os laivos luminescentes dos faróis no asfalto molhado pela garoa. O público que se aglomera na porta do Cinerama para assistir ao filme “Os Dez Mandamentos” nem suspeita que, dentro de alguns anos, este será um cinema-fantasma e esta bela entrada onde se posta este elegante guarda-civil estará cheia de fezes e urina da legião de miseráveis vagabundos que tomarão conta do centro da cidade. Mas hoje é hoje, e ontem foi ontem: tal como aquela gente que não fugiu do centro de São Paulo e esperou para assistir a transformação do Cinerama num cinema-fantasma, neste momento, várias pessoas estão esperando no saguão do cinema pelo fim do longo filme. Saem algumas pessoas, aquelas que não se incomodam em assistir a filmes começados, e portanto, já viram o fim deste filme.

À noite, a cidade grande ruge diferente, mais calma, porém mais amedrontadora. Cauteloso, eu ando na rua como se a qualquer instante, um fantástico jaguar preto de alumiar e de olhos flamejantes, fosse romper as sombras e saltar sobre mim; ou então, como se a minha garganta já estivesse no gume lampejante da faca de um enorme assaltante de capa escura e molhada. Já ouvi uma história de um sujeito que, ao dobrar a esquina da rua Helvetia com a Barão de Limeira, teve a garganta cortada por um homem que escapou tranqüilamente, pois os fregueses do bar da esquina só tiveram coragem de chamar a polícia depois que homem tinha sumido na noite.

De costas para a São João, enquanto bebo meu café, eu converso à-toices com o engraxate que faz ponto na calçada, sob a marquise do meu prédio que ainda não foi invadido pelos sem-teto simplesmente por que estes ainda não existem. Rio-me com as considerações jocosas do engraxate sobre a história do bebê-diabo que nasceu por aí, pelas quebradas da cidade, e que está rendendo vendas às carradas ao jornal “Notícias Populares”, ou, como nós, os notívagos da Avenida São João o chamamos, o “Diário da Boca do Lixo”. E entre uma frase e outra, paramos para olhar a bunda da mulher gostosa que passou; e depois falamos sobre a novidade: aquele homem elegante que ninguém sabe de onde veio, e que passou perambular pelos bares de nossa região, cada dia mais bêbado e mais decadente; coisa do destino: será loucura, amnésia, desgosto pela vida, perda da mulher, do emprego, ou tudo isso junto? Ninguém sabe; mais alguns meses, e o coitado amanhecerá morto, encharcado de bebida e entanguido do frio úmido das madrugadas de São Paulo.

De repente, uma freada, rangido de ferros, um grito, e o engraxate exclama: “iiih... mataram leitoa no asfalto!” — é o guinchado lúgubre dos pneus daquele carro escuro, o único jaguar assassino que pode existir na selva de São Paulo (trocadilho infame, mas necessário). Um giro rápido do banquinho do balcão do bar volta-me para a avenida e a cena que os meus olhos fotografam não é duma leitoa morta, mas sim, da cabeça sanguinolenta de um velho caído junto aos trilhos do bonde. O velho teve uma sorte daquelas que só acontecem a cada mil anos, pois quando foi atropelado pelo carro escuro que fugiu, é claro, ele caiu de tal modo sobre os trilhos que a roda do bonde só pegou de raspão na sua cabeça e arrancou-lhe parte do couro cabeludo. Quando me aproximei, vi a massa sanguinolenta de pele e cabelos, o brilho da luz do poste nos filetes finos de sangue que escorriam no asfalto molhado da garoa. As pessoas tergiversam em volta do velho ferido, discutindo nervosamente sobre o que fazer. E se não fosse pela dura voz de comando de meu tio, oficial do exército, as almas caridosas que tripulam essas boas-vontades atarantadas, mas perfeitamente ineptas, teriam matado o pobre velho justamente por falta do que desejavam prover: um socorro rápido! Como os fones celulares ainda não existem, o meu tio correu até o bar da esquina e ligou, para a polícia e para o pronto-socorro. Em alguns minutos, se ouvia o uivo lancinante da sirene de uma ambulância correndo em direção ao Pronto Socorro da Barra Funda.

Entretanto, o meu olhar-câmara corta da cena do acidente para esquina da Helvetia com a Barão de Limeira. Comprimo o meu corpo contra a parede do bar, mas não adianta, agora, a faca que vejo na mão do assaltante de capa escura já está quase na minha garganta engasgada pela visão do sangue daquele velho. Se de pronto não me mexo, salto dessa cama e vou até o banheiro é por que aquela parede do meu quarto, em nada parecida com a daquela esquina da rua Helvetia, não vai me proteger da faca do assaltante que estou a contemplar e é tão real, tão real que seria capaz de me cortar [em tiras, para ser mais chocante] se eu apenas mostrar alguma intenção de me mexer! Minha mente resvala por entre brechas de tempo, o perigo é transtemporal! E no tempo de agora, tempo de sem-teto, sem-terra, sem-mulher, sem-vale-transporte, sem-alma, e de tantos drogados, a violência cresceu assustadoramente — então não ouvimos falar todo dia que a situação no Rio de Janeiro está pior que a eterna guerra do Oriente Médio? Aqui em São Paulo, a situação não é nada melhor que no Rio, a vida vale pouco, muito pouco nestes dias, e este assaltante vai mesmo me cortar a garganta, ou me arrancar o tampo do couro cabeludo (ah... aquele velho atropelado!).

Devo ter virado um nada, ou uma folha de papel confundida com os reclames grudados na parede, pois o assaltante foi embora sem me ver! Afastado o perigo, eu me levantei, abri a janela para o sol nascente entrar, e consegui ir até o banheiro. De volta à cama, espero que a manhã não termine nunca para que eu continue a assistir a esses filmes que eu recrio. Pondero que nas recâmaras do labirinto do museu da minha mente, o tempo é de borracha — ora, que novidade é essa! Que o tempo se elastece na espera já o disse poeta João Cabral, mas é claro: se não é da espera da morte que estamos falando, e sim, da curtição da preguiça, a angústia inexiste e a elasticidade do tempo é deliciosa! E, consoante o que há no mais egípcio livro da bíblia, o “Livro dos Provérbios”, assim como a porta se revolve nos seus gonzos, também eu, o preguiçoso, revolvo-me na cama para acomodar estes meus ossos que parecem querer se desconjuntar do meu esqueleto, tanto que estralam. A minha cabeça repousa por alguns instantes numa posição provisoriamente confortável.

Estou ainda chocado pela imagem do sangue que escorre daquela cabeça sem o couro cabeludo, quando outra imagem coloca-se na tela do meu visor; esta sim, parece ser um repousante tema bucólico! Amanhece e ao longe, os cães ainda uivam tristezas insondáveis e a cidade de Penas do Desterro parece ser só Desterro... só Desterro! É que os uivos desses cães me trazem lembranças da infância lá em Minas. Mas vejamos o que há naquele viçoso capinzal que aparece nesta nova imagem que vem se avultando... mas isto ficará para outra narrativa.

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 29/05/2010
Reeditado em 10/06/2012
Código do texto: T2288292
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