[V - O Julgamento]

... outro da coletânea "Treze Contos Absurdos"... ou, qualquer que seja o título que vier a ter... se é que vai...

[Quem poderia dizer que o absurdo

não é a matéria-prima dos sentidos?]

O dia estava cinzento e frio como convinha a um evento como aquele. Quando entrei no enorme auditório, todos os lugares já estavam tomados. Apesar do silêncio reinante, o rumor dos meus passos não atraiu a atenção de ninguém, nem sequer uma cabeça se voltou para mim. Caminhei pelo corredor da direita e detive-me a meio caminho da tribuna solene; encostei meu ombro na parede, respirei profundamente, corri os olhos por todo o ambiente e pensei: como custou a chegar este dia!

Os membros da Comissão que eu presumia me serem favoráveis sentavam-se à esquerda da mesa e lançavam à audiência um olhar de indiferença, de quase desdém. À sua direita, a terceira cadeira, onde deveria sentar-se aquela mulher que me odiava, ainda estava vazia, pois ela se atrasara. Em frente à mesa da Comissão, num plano inferior, havia uma única cadeira simples que supostamente me estava reservada. Esperei que algum funcionário viesse me acompanhar até o lugar que parecia ser o meu, mas ninguém apareceu e as faces impassíveis dos dois membros da Comissão não me sugeriam que eu devesse me aproximar. Olhei a cadeira da mulher e o brilho da luz no couro do espaldar aumentava ainda mais a minha ansiedade; sabidamente, ela era uma ferrenha opositora do meu mentor e estendia o seu ódio a todos os iniciandos do seu inimigo! Como foi que pude arranjar-me uma situação assim, lamentei-me em silêncio; deve ser essa notável capacidade que tenho de arranjar-me complicações pela vida afora!

Ouviu-se um leve rumor da porta lateral da mesa da Comissão e ela adentrou o recinto. Antes de sentar-se, colocou a sua pasta sobre a mesa e passeou a dureza de seus belos olhos verdes por toda a audiência e embora fosse eu a única pessoa ainda de pé, ela não fez qualquer sinal de que havia me visto, nossos olhares se tocaram na frieza do ar. Assim que cheguei ao Instituto, a minha sorte com ela foi lançada: após as tratativas iniciais com o meu mentor, sem que eu soubesse, passei a fazer parte do rol dos enjeitados: uma vez que eu me tornara parte do “outro grupo”, para mim, toda a dureza que ela tivesse, seria pouca! Quando ela me via pelos corredores, ela meneava a cabeça e lançava-me um olhar ao mesmo tempo curioso, e maligno como o de um cobra prestes a dar o bote. Depois de me olhar, sem dizer uma palavra de cumprimento, ela seguia seu caminho. Eu me sentia desnudado por aquele olhar esfuziante que me percorria o corpo de alto a baixo! Apesar de eu ser bem mais jovem que ela, eu diria, que não fora o meu mentor um de seus inimigos figadais, talvez ela me convidasse para a sua intimidade. Sempre tive um fraco por mulheres mais velhas que eu, e com ela não foi diferente: achei-a bela e desejável! Imginei-me na cama com ela; ela se debateria a princípio, mas depois, eu tinha certeza, uma penetração forte e vigorosa iria domar aquele ódio de mim que ela procurava demonstrar — ah, eu lhe dou o que você realmente quer de mim, sua égua braba!

Finalmente, com um ar solene e imperturbável, ela sentou-se. Os outros dois membros da Comissão remexeram-se de levemente em suas cadeiras e com ar circunspecto, o mais velho deles disse apenas: “declaro aberta esta sessão de julgamento”. Eu continuei de pé onde estava desde o início, pois ninguém mandou que eu me aproximasse. Eu olhava para a cadeira que permanecia vazia... por um longo tempo, fez-se um silêncio profundo. Depois, ouvi pigarros pela audiência, mas ninguém se mexia, todos pareciam quietos como estátuas. Em seguida, ouvi uma voz que parecia ser a minha — nada há de mais estranho que reconhecer a própria voz assim, ao longe! A “minha” voz falou por cerca de trinta minutos e calou-se; durante a minha fala, percebi que só a mulher tomava notas. Fez-se um breve silêncio e novamente o mais velho da Comissão falou com voz grave: “a sessão está aberta para a argüição do iniciando” e em seguida, passou a palavra à mulher. Vi-a se preparar como uma cobra pronta a dar o bote; ela abriu as anotações que fizera, e o seu olhar fuzilou a cadeira vazia; começara o questionamento. Ela formulava suas questões de maneira precisa, porém implacável, e com clara intenção de causar embaraço e, se possível, a minha queda, e é claro, por extensão, a do meu mentor perante os olhos da comunidade.

Não suportei presenciar o questionamento da mulher; virei-me e busquei a saída do auditório, pois agora, eu queria luz, precisava de ar. Ao sair, eu percebi a voz quase estridente da mulher que ainda continuava o seu questionamento, dirigido à cadeira vazia de onde, certamente, a minha voz faria a minha defesa. Neste instante, dei-me conta de onde estava... afinal, se ela ignora a minha presença, não só ela, mas todos a ignoram, eu não sei como pude ouvir a minha voz nesse recinto; este evento não me diz respeito — eu sou, na verdade, um especialista em espectroscopia nuclear de raios-gama e, ainda há pouco, eu tinha uma experimento em execução na ala de experiências do reator nuclear, e não deveria, portanto, de modo algum, estar ali naquele evento; na verdade, a minha hora ainda não chegara! Corri ao prédio do reator, atravessei o jardim e falei com os operadores; “tudo em ordem”, asseguraram-me, “o reator já foi desligado e você pode ter acesso ao seu arranjo experimental!” Fui lá ver como estavam os instrumentos; tudo funcionara a contento, os dados foram adquiridos e o passo seguinte, seria a análise das medidas a ser feita apenas na segunda-feira.

Satisfeito, desliguei os equipamentos, sai do prédio e voltei ao jardim e tencionava ira até o prédio do auditório, pois estava curioso em relação ao tal evento. Neste instante, aqueles dois enormes cães de pelo avermelhado, cor-de-vinho, eu diria, escaparam do cercado que havia junto ao prédio principal e saltaram sobre mim; fizeram-me tanta festa que me jogaram de costas no chão e puseram-se a lamber-me o rosto. Quando me desvencilhei deles, a minha blusa jeans estava toda enlameada de suas patas. Ganhei o pátio, mas hesitei em voltar ao evento; pensei em ir embora, não queria ver aquele interrogatório feito à minha voz; quem mais estaria naquela cadeira, senão a minha voz... ou uma figuração dela?. Tentei olhar para o lugar onde deixara o meu carro; mas o que vi foi uma tabuleta branca, com letras azuis, em que estava anunciada a sessão do meu julgamento; pude ler o meu nome completo no anúncio; não restava dúvida, era eu mesmo, e pelo horário anunciado, eu já estava atrasado!

Corri para o auditório, mas agora, na entrada, havia agora dois guardas que não me deixaram passar — “sua roupa!”, disseram-me. “O que tem a minha roupa? Deixem-me passar, é o meu julgamento, eu sou o Sr. Carlos S. !” Mas os guardas foram taxativos: “não queremos saber quem é o senhor, e temos ordens de não deixar entrar pessoas mal-vestidas ou sujas no auditório!”. Tentei argumentar: “ora, foram os dois cães do prédio ao lado, são meus amigos!”; e eles disseram: “moço, não fomos informados de nenhum julgamento, e não existem cães nesta Instituição!”. Minha ansiedade ia ao extremo; pois ao fundo, eu podia ver a mulher falando para a cadeira vazia! Supliquei: “deixem-me passar, vejam, o julgamento já começou, não estão vendo aquela mulher falar para a cadeira vazia onde eu deveria estar sentado?”. Os dois guardas foram inflexíveis: “se continuar a insistir em passar, teremos de detê-lo; primeiro, diz que há um julgamento do qual não sabemos; depois afirma que foram cães que deixaram sua blusa neste estado!”. Desesperei-me: “mas eu já fiz a minha apresentação, e agora tenho de responder às questões daquela mulher, ou estarei perdido, perdido, sabem as conseqüências o que é um julgamento em que o argüido não comparece?”. Mas os guardas postaram-me ainda mais firmemente de modo a barrar-me a passagem: “olha, usaremos a força se necessário!”. Num gesto rápido, arranquei e atirei longe a blusa jeans; e dispunha-me a continuar a argumentação com os guardas, mas percebi que a audiência se levantara. Novamente, pude ouvir a minha voz, agora em tom resignado, discorrendo com o meu mentor sobre as questões da mulher. O julgamento terminara, e eu até hoje não pude saber o que me aconteceu; malditos cães, malditos guardas!

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 30/05/2010
Reeditado em 10/06/2012
Código do texto: T2289394
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