[VI - O Vacinador]

....da minha coletânea "Treze Contos Absurdos"... mais um!

[... um sertanejo não erra o caminho dos olhos de outro sertanejo]

De quantos Manuéis pode ser feito um sofrimento? Ao certo não sei, e ninguém sabe; mas, pelo menos dois são necessários, ainda que seja um em contraponto do outro! E vou narrar a causa dessa minha afirmação.

Em frente ao prédio dos Correios, mas na calçada do outro lado da Avenida São João, lá estavam eles, naquela noite paulistana de março. Era uma família que perdera tudo lá no nordeste. Juntaram os trapos e vieram parar aqui. Tiveram suas misérias devoradas pela seca e pelo apetite insaciável dos políticos que desviam todas as verbas públicas que lá chegam. Estas verbas, como diz o meu tio, paulista expedicionário de 32, são “oriundas dos paulistas — de onde é que você pensa que sai a maioria dos recursos da nação senão da locomotiva paulista?” Concordo, pelo menos em parte, com essa frase espirituosa de meu tio — sou mineiro, mas sou reconhecido, sou sim! Pois afinal, cá estou eu, em fins dos anos sessenta, na capital de São Paulo. Tempos de colegial, na ainda prestigiosa escola pública, o Instituto de Educação Doutor Octávio Mendes, e também, graças a uma bolsa de estudos do governo paulista, no curso de Eletrônica Industrial do Liceu Eduardo Prado.

Calma, já eu chego na história. Quero falar da saga dessa família de retirantes que deu com os lombos açoitados de sofrimentos em terras paulistas, uma saga que traça a geografia da dor, da miséria, e da violência que hoje se desenha por toda a cidade.

São Paulo não pára, e nem adormece — nunca! À noite, como se fora um grande coração, a cidade apenas pulsa em ritmo mais lento, mas sem parar, jamais! E todas as manhãs, a cidade se agita e ruge no troar dos ônibus, dos carros, dos trens, e marcha, célere, nos passos apressados dos seus habitantes que correm para o trabalho. Eu, mineiro contemplativo, venho de uma cidade pequena e pasmacenta, aprendi logo a correr também, ou então, me levavam no embrulho da multidão. Logo que cheguei a São Paulo, saí pela cidade com meu tio. Numa manhã fria de junho, caminhávamos pela Rua Direita; passamos pelo Largo do Café e lá ia eu olhando as fachadas daqueles prédios antigos, ou as vitrines das lojas e quase atropelado pela a gente apressada — “vich, paulista tem pressa, hein tio?” E ele: “que é que você pensa, pra carregar o Brasil nas costas, o paulista tem de trabalhar duro, e correr muito!”. Eu respondi, assim, a meio-pano: “é, tio... mas Juscelino é mineiro... e ele fez Brasília!” Mais um puxão na minha mão para desviar-me do fluxo de gente: “ora, menino, para o que é, bastava e sobrava a bandalheira que já se fazia no Rio; e você ainda há de ver para que é que vai servir aquela cidade que quebrou o país!” Proféticas palavras, proféticas e amargas palavras — é o que estamos a constatar nestes começos do século XXI — Brasília serve sim, de palco para as maiores peças de corrupção que já se viu!

Mas o meu tempo é hoje: são passados quase dois terços do século XX. Todas as manhãs, eu estou nos Altos do Mandaqui, no “Octávio Mendes”, e à noite, estou no Itaim, no “Eduardo Prado”. Assim, todos os dias, cruzo São Paulo de sul a norte, de norte a sul. E o meu olhar, “nítido como um girassol”, colhe as dores do crescimento da gigantesca metrópole, as angústias transformantes [ou deformantes?] da “Paulicéia Desvairada” e a sua “ grande boca de mil dentes”.

Final de verão abafado, coisa rara nesta São Paulo ainda das frias garoas. A manchete de “O Estado de São Paulo” falava da seca no nordeste. Em São Paulo, aquele sofrimento chegava em levas humanas na “Estação do Norte”. Passava da meia-noite quando eu, de volta do Liceu, desci do ônibus da linha “Rio Pequeno”, o “Expresso 774” como nós o chamávamos, pois àquela hora, o ônibus percorria a Avenida Nove de Julho numa velocidade de fazer arrepiar os cabelos dos passageiros; tanto corria o ônibus que, com o perdão do exagero, dentaduras voavam de uma a outra fila de bancos, encaixando-se em bocas trocadas, abertas de espanto! Desci no ponto final, junto ao prédio da Light, passei o Viaduto do Chá e caminhei rumo ao majestoso prédio dos Correios, o “Correião”. Dobrei a esquina e ia começar a subir a Avenida São João, quando, ao espanto dos meus olhos, o quadro de dor surgiu na calçada: amontoados uns nos outros, lá estavam eles, os desgraçados tangidos pela miséria para estas ruas paulistanas. Homem, mulher e renque de cinco filhos pequenos, aninhados em restos de jornais, que a madrugada de São Paulo, ainda que no verão, para eles é inverno brabo. Sob a luz do poste de ferro, eu vi os olhos do pobre homem: tinham um brilho semelhante ao que, desde criança, eu via nos olhos dos sertanejos lá em Minas: um brilho de quem lança o olhar sobre as paisagens infinitas, sem fim... tenta, sem jamais conseguir, e por isso é triste, abarcar as lonjuras da vastidão verde das invernadas das vazantes do Rio Paranaíba, termos em que a Fazenda Barreirão da minha infância tocava o sem-limites dos imensos rincões de Minas e Goiás.

Mas havia uma diferença entre o brilho do seu olhar e o do sertanejo de Minas ao qual eu estava acostumado; e foi essa diferença que me deu um travo na garganta, uma vontade de chorar que eu não consegui conter: o seu olhar triste também contemplava lonjuras, mas lonjuras de uma paisagem devastada, calcinada pela desgraça da seca impiedosa. Brilho de quem contempla o inferno, brilho estranho que, num segundo, punha uma distância infinita entre mim e ele, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo nos aproximava... Sem se levantar do chão, o homem estendeu-me a mão; nem era preciso gastar palavras; vasculhei os bolsos de estudante morando fora, em casa dos tios, para economizar. Tudo que eu tinha era alguns passes de ônibus da CMTC, e algumas moedas que quase nada valiam. Pus as moedas naquela mão trigueira, magra, de unhas sujas. A custo, consegui perguntar, assim, a esmo, só pela vontade de falar alguma coisa para aquela criatura: “ o seu nome, moço? Eu também sou sertanejo, mas vim de Minas!”. Ele olhou-me com mais atenção, meneou a cabeça, e disse mansamente: “É Manoel, meu filho; Manoel com ó, viu?! Deus lhe pague?” Com aquele sotaque ainda ressoando em meus ouvidos, eu apertei o passo, subi a ladeira da Avenida São João e só consegui parar de soluçar quando cheguei na desembocadura do Largo do Arouche. “Seu dotô, uma esmola, pra um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão” — era a cantoria de Luiz Gonzaga a ecoar-me nos ouvidos, no peito, no meu ser inteiro!

O tempo esfolha a gente. Quase um ano depois, eu vinha a pé do Teatro Municipal e caminhava por aquele toco de rua que vai dar na São João, mas cortando volta do quartel do exército que havia por ali, pois estes são tempos bicudos, tempos de AI-5, de sumiços de companheiros de escola. Atravessei a rua, vi uma pequena aglomeração de pessoas e... lá estavam aquele olhos! Com uniforme e identificação do governo, era ele sim, o Manoel, agora trabalhando na campanha de vacinação contra varíola, com aquela pistola que me fazia lembrar a vacinação do gado lá na Barreirão. Um sertanejo não erra o caminho dos olhos de outro sertanejo: ele lembrou-se de mim, daquela noite, lá da calçada em frente do Correião! “Ô seu minino bondoso, como é que vai?!” A sua voz era cheia de alegria. “Ô Manoel, e a mulher, os filhos, como é que vocês se arranjaram nesta terra?”. Acenou-me com a mão, que eu esperasse um pouco enquanto aplicava a vacina em mais algumas pessoas. Quando raleou o movimento, ele desceu da pequena plataforma onde estava e contou-me. Foram parar no distante Bairro do Imirim, numa casinha à beira de um brejo, as crianças passando fome, quase sem roupas, a mulher e ele mal conseguindo alguns bicos... Mas por sorte — “Veja só, minino, que coincidença, pois foi um outro Manoel que ajudou agente, foi sim, viu? Foi o Seu Manoel português, dono de uma padaria na avenida principal do Imirim — eta homem de coração de manteiga, seu minino!”. O Seu Manuel português ganhou até fama de bobo, de tanto fazer caridade; tinha gente que dizia que ele ia ficar pobre, “pobreza era o que eu tinha na minha aldeia, cá nesta terra abençoada, só tenho riquezas!”. Pois o Seu Manuel, tão querido no bairro, logo falou com alguém, que também falou com mais alguém e resultou neste emprego de vacinador para o Manoel — não era muito, mas foi a salvação — os meninos puderam comer e vestir, a mulher estava bem e iam vivendo... vivendo.

Segui pela avenida acima até a minha casa; eu estava contente pelo Manoel ter tido a sorte de encontrar o Seu Manuel... Seria solidariedade por causa do nome, por causa da sina comum de fugir da Necessidade? Que importa, que importa...

Algum tempo depois, a campanha contra a vacinação ainda continuava, pois havia vacinadores pelas ruas da cidade.

Mas hoje, novamente caminhando pela São João, eu não avistei o Manoel com sua pistola de vacina. Entrei no bar da esquina, deviam saber de alguma coisa... indaguei do Manoel, “aquele que ficava aí na porta, vacinando...”. O homem bar olhou-me com tristeza: “ah... já vi que o rapazinho conhecia ele, mas ainda não sabe...”. Minha ansiedade subiu: “Não sabe, o quê, moço, o quê?” “Sabe como é, esse pessoal sertanejo é assim mesmo... não engolem uma desfeita por menor que seja, até mesmo brincar com eles é perigoso!”. “É que eles têm a alma ferida pelas desgraças”, amenizei. E ele continuou: uma tarde dessas, ele estava vacinando as pessoas quando surgiu um tipo provocador, e começou a troçar do Manoel, fazendo perguntas irônicas: “e aí, seu nortista, tem vacina aí contra desgraça de flagelado, tem?”. O Manoel não respondeu. “Como é, nortista, tem vacina contra feiúra, tem?”. Ele parou, segurou a pistola de vacina no ar, mas continuou quieto. “Tem vacina aí contra a miséria que te expulsou?”. Agora, tremia-lhe a mão direita; se aquela pistola fosse uma arma, já teria saído o tiro. Ele ainda não se mexeu, mas os seus olhos já brilhavam de ódio! Lembrei-me da noite na calçada, em frente ao Correião, e já doído pela ofensa ao Manoel, interrompi a narrativa: “o olhar do sertanejo é assim mesmo, tem essas varianças, viu, moço?”. O homem deu ares de que notou o meu sotaque, olhou-me nos olhos, viu que eu me doía pelo Manoel, e sorriu-me: “é rapaz... vejo que sim, vejo que sim!”. “Pois fale moço, o que é que aconteceu?”. E me contou o desfecho: o tal sujeito continuou a zombar do Manoel e insistiu: “e aí, nortista, você estava passando fome lá, e não me diz nada, será que já pôs a mulher na zona?!”. Pois esse foi o limite que ele pôde suportar — jogou a pistola para mão esquerda, deu um salto para a calçada, cresceu pra cima do sujeito e respondeu, já com uma faca na mão direita: “Tem sim, seu safado, e resolve de vez, num sabe?!”. E a faca afiada correu pela barriga do sujeito que já caiu estrebuchando, tentando segurar as tripas com as mãos. Em seguida, ele desvencilhou-se das coisas da vacina, e sumiu na multidão, não houve quem o pudesse deter!

Fiquei pasmo... tanto trabalho, tanta luta, tanta estrada, vem parar em São Paulo, e acontece uma coisa dessas... O que pensará o Seu Manuel português ao saber disso? Na certa já sabe... Fui até o bairro, cheguei à padaria, e logo vi o Seu Manuel, não há como confundir o sotaque lusitano! Aproximei-me, falei do Manoel, disse que o conhecera nos dias em que chegaram do norte. O homem já se pôs em cuidados comigo, mas acho que a minha juventude, o meu jeito de falar, o tranqüilizaram. “Ah... o Manoel? — Sei lá onde anda, depois do que aconteceu na cidade, sumiram todos cá do bairro!”. Demorei um pouco a responder: “Mas ele falou tão bem do senhor, estava tão agradecido pelo que fez por eles... imaginei que o senhor pudesse... por isso vim saber...”. Ele olhou-me fixamente: “Ó menino, o Manoel é gente boa, p’ssoa correta, e não sei onde ele anda, e se eu soubesse, não te diria, estás a sabere?!” E recomendou-me: “ E pare de andar por aí a perguntar por ele!?”. Pensei comigo: Ah... o Seu Manuel sabe quem é o Manoel, e “protegeu”! — tal como acontece lá no sertão!

Agora sim, tive testemunho, e dos bons: são necessários pelo menos dois Manuéis para compor um sofrimento! E no caso, para ser mais exato, um Manoel e um Manuel!

Na noite seguinte, enquanto eu seguia no “Expresso 774” para o Vale do Anhangabaú, lembrei-me do Guimarães Rosa: o sertão está em toda a parte, o sertão está em nós, e pelo visto, está até no coração de manteiga daquele bondoso português!

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 30/05/2010
Reeditado em 16/11/2012
Código do texto: T2289402
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