[XI - No Restaurante]

Dos "Treze Contos Absurdos", este é o mais insólito.

[... quem será esse outro que me sonha? ]

O que se esconde atrás de meu sorriso? Nem eu sei, às vezes... E por trás das minhas palavras, sei menos ainda! Não é raro que eu leve bastante tempo até que descubra o estado de alma que me levou a dizer o que eu disse... ou escrevi! No ato dessa descoberta, a clareza fulgurante — só me cabia mesmo dizer o que disse ou escrever o que escrevi! No entanto, tenho certeza de que o encoberto do que se diz é muito maior que o revelado... Assim são as quase totalmente submersas montanhas de gelo que só mostram uma pequena crista acima d’água! Por isso, parafraseando João Cabral, as palavras ameaçam mais com o que podem disparar do que com aquilo que disparam.

Se mal dou conta de saber o que há por trás de meu sorriso ou das minhas palavras, por mais que eu pratique a auto-escavação, sei pouco, muito pouco do que jaz sob a profundeza de meus sonhos! Mas é a partir dos sonhos que emergem das regiões abissais da mente que eu consigo criar-me estados d'alma fantásticos, tão vivos e tão intensos que chegam a me causar sofrimento! Se você me conhece, não deveria se espantar com as cenas que vou lhe descrever abaixo. Eu me autoflagelo no exercício de imaginar o inimaginável, ou a mais indesejada das circunstâncias. E não consigo atinar com uma circunstância mais intolerável que a cena que você engendrou naquele restaurante da esquina da praça... faz tanto tempo, lembra-se?

Entramos por uma porta estreita que dava acesso à pequena, porém elegante, cafeteria do restaurante. Numa das mesas do fundo, conversando animadamente com dois homens, lá estava ele! E tão logo nos viu, ou melhor, viu você, observei a cabeça dele girar como se fosse uma câmera à procura do melhor foco — ele cortou o olhar da cena com os dois companheiros de mesa e voltou-se todo para a sua direção. Não lhe bastou deixar os amigos de lado — levantou-se, e, todo maneiroso, veio falar com você. O tal sujeito era um tipo magro feito um vara-pau (nem tanto, você talvez o achasse elegante...), usava um terno impecável, tinha bigode preto, bem fino, cabelos pretos e penteados para trás com o apuro que permite a brilhantina, se bem que esta pode até ser maldade minha, pois se a conheço bem, você não sairia com um tipo que usasse brilhantina — ou sairia?! Geralmente, as mulheres costumam se moldar aos gostos e hábitos de seus companheiros do momento (outra maldade minha, quero ferir você). Ele cumprimentou-a todo meloso, mas sem gestos ousados, beijou-lhe a mão direita e disse-lhe palavras macias que, aos meus ouvidos, manifestaram a existência de uma intimidade de pessoas se conhecem de outros lugares, outros instantes...

De olhos brilhantes, você lhe sorriu com carinho, mas conteve-se, ficou parada em estado de atenção, creio que a minha presença deve ter-lhe inibido a palavra, ou um gesto mais carinhoso. E se nada lhe disse além de um cumprimento, os seus olhos falaram mais do que os lábios! Vocês se entreolharam por um tempo que me pareceu eterno; eu engoli em seco, e fiquei estático, de ventas abertas, minha respiração parecia congelar-me a traquéia! Em nenhum momento dessa eternidade, ele dirigiu sua atenção para mim, exceto quando o ar ficou insustentável de tão pesado pelo constrangimento (você não fez menção alguma de me apresentar a ele); nesse ponto, ele olhou-me rapidamente e me disse: "eu sou o Dílson"; mas bem podia ser Dickson - não estou certo, a raiva não me deixou ouvir bem! Depois, numa atenção carinhosa e sutil, você se despediu dele segurando-lhe a mão direita entre as suas por mais tempo do que basta a um cumprimento, ou a uma simples despedida.

Quando nos afastamos dele, você, toda desconcertada, olhou-me de modo interrogante, como se estivesse a conferir a minha reação, ou como se esperasse uma pergunta minha para iniciar algum tipo de explicação. Mas eu estava tão perturbado que nada lhe disse; e numa reação incompreensível face ao tumulto de idéias em minha cabeça, consegui esboçar um sorriso gelado.

Em silêncio, pois agora você estava visivelmente perturbada, nós passamos a cancelinha da ala do refeitório, e nos aproximamos do balcão do buffet para nos servirmos. Neste instante, eu, todo ódio, tive a idéia de comprar um pedaço de queijo seco, nem sei por quê — o tempo passado permite-me perguntar se seria para tentar me afastar de você, por causa do constrangimento que eu acabara de passar; será? Não sei; mas a vontade de comer queijo é que não poderia ser! Você seguiu adiante, serviu-se, e sem olhar para trás, dobrou o U do balcão e sentou-se numa mesa mais ao fundo, já próxima da outra cancelinha de madeira que separava o salão do refeitório da ala da cafeteria (bem ao jeito de você poder olhar para a mesa em que ele estava.

Eu fiquei retido no caixa porque o moleque, filho da dona do restaurante, não sabia fazer uma simples regra-de-três para calcular o preço do pedaço de queijo de 320 g que eu comprara, e sob o sorriso complacente da mãe, pôs-se a me perguntar como fazer a tal conta. Nervoso, mas solícito, eu não quis ferir a suscetibilidade do menino e nem fazê-lo sentir que perdia a oportunidade de aprender essa conta tão simples; assim, peguei um papel de embrulho, e mostrei-lhe como calcular o preço do pedaço de queijo.

Estranhei o fato de que ao terminar de se servir, você nem se voltou para mim, e quando eu me demorei, achei ainda mais estranho que você não tenha vindo saber o que estava acontecendo. No instante em que eu falava com o menino, eu levantava a cabeça, mas não podia vê-la, pois você estava do outro lado do U do balcão; eu não entendia como você podia estar comendo sozinha... ou não estaria sozinha?! Minha ansiedade foi ao auge...

Eu mal podia me conter, mas aquele maldito moleque não parava mais de me perguntar como calcular o valor do queijo! E tanto perguntou, até que a mãe dele percebeu minha ansiedade e mandou-o parar com aquilo. Outra vez, tanto tempo transcorrido depois deste incidente, torno a perguntar-me por que simplesmente não desconversei, deixei o moleque com seu problema de regra-de-três, e segui você em direção à mesa... depois do que você fez à entrada do restaurante, eu acho que não estava suportando a sua presença! Finalmente, com a cabeça fervendo de ódio, nem vi o que coloquei em meu prato - o trivial - arroz, feijão, alguma carne e segui para a sua mesa situada bem próxima da saída do refeitório.

Ah, nem sabe o que eu senti quando tive a explicação de seu desinteresse em saber por que eu me demorei tanto no caixa! E quando vi aquela cadeira virada de um modo que mostrava claramente que alguém (ele!) acabara de sair dali, tive a certeza de tudo que pressenti na entrada: era mesmo um caso antigo! E você, inclinada sobre o prato (talvez para esconder de mim os seus olhos), nem me viu chegar, e só quando me sentei à mesa, você achou de perguntar, sem interesse, sem ânimo, por que eu havia demorado...

Não lhe respondi, não pude! Antes de sentar-me, coloquei o prato sobre a mesa e varri a cafeteria com o meu olhar. Não havia mais ninguém lá. Com certeza, ao pressentir que eu me aproximava, ele fora embora; creio não ousaria provocar-me ainda mais, pois com um único soco, eu poderia parti-lo ao meio! Sentei-me em silêncio e olhei para a comida em meu prato, mas sem nenhuma vontade de comer! Levantei-me, caminhei até a cancelinha de madeira e vi você ainda mastigando lentamente, e sem ânimo de se levantar (evitava-me, por certo...). Mas esperei um tempo longo o bastante para que você não tivesse outra escolha senão se levantar, e seguir-me até a saída.

Quando chegamos à rua, que ironia ! - eu trazia ainda na mão o pedaço de queijo duro que havia comprado. Desembrulhei-o, e pus-me a roê-lo devagarinho. Finalmente, quando consegui falar, perguntei-lhe: "como é que você pôde fazer isso comigo!?" De tudo que eu queria gritar-lhe — as suspeitas que eu julguei confirmadas, os nomes que apliquei ao tal sujeito, o meu ódio — só esta pergunta escapou do vulcão que era a minha mente! Você me olhou, e parecia espantada com o brilho do meu olhar; sei lá que palavras tentaram sair-lhe dos lábios, pois mas não foram sequer esboçadas para reagir, explicar — nada; nem uma palavra! Seu silêncio dizia-me que você não tinha como explicar uma situação tão evidente como aquela — o tal sujeito foi (ou ainda é?) um caso seu!

Joguei longe o queijo, entrei no carro sozinho, e com o sangue estuando-me nas veias, saí devagar, e até quando dobrei a próxima esquina, ainda pude ver você parada, atônita, à beira da calçada, olhando-me desaparecer. Que dor, que perda você parecia sentir... mas no entanto, embora eu já sentisse aplacar-me o furor, eu não voltei atrás; segui o meu caminho!

E foi só pelas nove horas da manhã, depois de cessar a minha intensa agitação, e quando essa cena fantástica já se esmaecia como uma nuvem esparsa, é que me dei conta: àquela hora da manhã, você dormia ainda placidamente em sua casa — jamais, em tempo algum, você estivera naquele restaurante!

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 31/05/2010
Reeditado em 10/06/2012
Código do texto: T2291190
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