[I - Quadros: Os Corredores do Museu da Mente]

[ahá... eis a introdução dos Treze Contos Absurdos!]

A manhã chuvosa segura-me na cama. Cai uma chuva mansa, sem pressa de passar, não dá mesmo vontade de levantar. Tenho o corpo dolorido — seria a noite mal dormida, ou dormida de um modo que não é aquele em que viajo para mais perto da morte, prima-irmã do sono? Essa dor no corpo pode bem ser causada pelo excesso de trabalho realizado durante sonhos — aqueles, os piores!

Essa dor, renitente de estralar os ossos, surge quando a mente vagueia de imagem em imagem, e o corpo insone rola na cama procurando aquela posição que traria o sono — é freqüente eu me esquecer de que lado costumo dormir — sobre o lado direito, já tentei, nada do sono vir; não, sobre o esquerdo não, que o meu peso comprime o coração; de bruços também não, a coluna vai sofrer —, como será que eu durmo, afinal?!

Mas hoje, de falta de sono é que não posso me queixar! Então, essa dor é mesmo do excesso de cama! Na verdade, para mim, o sono é a fuga da dor: quando tudo parece não ter mais jeito, quando tudo vira nada, quando o mundo é a corda arrebentada do trapézio em que eu balançava, e até ousava ter esperanças — eu durmo, ah, se durmo! “Dorme meu filho, dorme que passa a sua dor”, dizia a minha mãe — se ela tinha razão, não sei, mas sei que jamais esse conselho me incitava à covardia...

O tempo passa, e eu não me arranco da cama; só em pensamentos eu enfrento a indolência: assisto o desfiar de imagens virtuais em que sou ator e expectador ao mesmo tempo. E nesses instantes, as soluções surgidas nestas visões servem-me como meio de purgar os meus passados e criar as minhas futurações. Escrever sobre isto, expor ao mundo o ridículo de situações absurdas — gasto coragem nisso? Gasto sim, pois tenho essa arrogância de achar que sou mais corajoso que os outros! Afinal, quem é que tem a coragem de confessar as idéias bestas brotadas no cérebro quando o corpo fica moleirando na cama além da conta; quem ousaria falar das figurações que assomam aos portais da mente escancarados pela imaginação? Essas imagens são como quadros que saem uns dos outros, um desfile de pinturas que passam ante o visor da minha imaginação. Seu soubesse pintar... bem, eu não sei – o mundo perdeu um artista!

Por exemplo, acabo de ver um pé de jiló, bonito, viçoso, carregado de jilós verdinhos; eu adoro molho de jiló e gosto do verde-esperança das folhas. Mas há nesta figuração alguns elementos que me intrigam: são estas formigas pretas que sobem e descem apressadamente pelos verdes talos do pé de jiló! Se fossem formigas cortadeiras, daquelas que eu vi quando cortavam as folhas das roseiras do jardim da casa em que havia um velório, se fossem essas, as trabalhadoras dos tristes janeiros das águas idas, eu saberia a que vieram: vieram trazer-me a lembrança da finitude; mas não são essas as formigas que eu figuro, a morte passa ao largo desse pé de jiló... vai ver, a morte nem gosta de jiló! São alegres, trabalhadeiras incansáveis, estas céleres formigas pretas que eu vejo neste quadro. Descompreendo a pressa que têm essas formigas batalhadoras; por que tanta pressa na subida, mesmo que elas atinjam o ramo mais alto, será tudo que poderão alcançar; e lá, o que as espera é a necessidade da descida, o perigo da queda ou então, justamente por se tornarem mais visíveis, a captura por um pássaro tão faminto quanto ligeiro — ou seja... a Morte?! A pressa dessas formigas trabalhadeiras dá-me um enfado... e se eu esfregar bem os olhos, no que essas formigas se transformarão? Ou, se forem embora do visor imaginário, aonde irão, que caminhos do meu cérebro percorrerão até que eu as veja novamente? Dá o que pensar essa imagem da faina das formigas... Sísifo e a rocha? O sobrevôo de mim jamais tem um pouso, jamais...

Mas nesta outra imagem, a de uma impossível máquina de viajar ao sol, não há nada além de uma carcaça lisa, e suspeito que esteja vazia; qual seria o conteúdo de uma máquina tão absurda? Mas ainda assim, esta estrambótica forma lisa, um ovóide com reentrâncias, perpassou-me pelos olhos da imaginação. E o que fazer com ela?! Nada, deixá-la ir-se; mas, sabendo que é recorrente, sei que voltará outras vezes, até que eu descubra o que fazer com ela. Seria um exemplo de que o impossível pode ser pensado? Pois que seja; por ora, deixo-a aqui ao sabor da imaginação fantástica do leitor! Eu bem sei que eu não sou pragmático, que sou contemplativo, que vivo a figurar idéias malucas, como esta incoerente máquina absurda que esfria por dentro quanto mais calor recebe de fora... o que dirão os meus colegas físicos nucleares ao ler isto? Porém, deixo a minha imaginação seguir o impossível engenho em seu vôo até o ponto em que a proximidade excessiva do sol torra esse atrevido produto de uma mente louca... Haveria algo tão inútil, tão estúpido quanto a imagem dessa impossível engenhoca? Voar até o sol, perscrutar-lhe os segredos, saber da matriz de tanta energia — buscar entendê-la para melhor utilizá-la? Por quê?! Faetonte ou Ícaro, quem sou eu afinal, senão um cientista?! Balanço os galhos da frondosa árvore das incertezas para ver se caem os saborosos frutos da minha curiosidade! Se eu consegui confundir quem me leu, pago-me!

Uma figuração nunca é singular; sempre traz outra fisgada pelo queixo, ou pela ponta que já estava quase a escapar do visor da imaginação. E o que dizer então dessas visões que se desenovelam umas das outras, numa fieira interminável de quadros? Alguns desses quadros são tão inebriantes, tão mágicos, que me fazem perder a vontade de voltar ao real; outros tão terrivelmente cinzentos que logo os afasto, passo a página do álbum!

Quando eu era criança, minha mãe ganhou um pequeno quadro, era uma linda paisagem bucólica que mostrava uma ilha onde havia uma singela casinha, próxima a um pequeno atracadouro para a canoa que se aproximava. O vidro pintado com árvores escuras ficava a cerca de um centímetro da superfície do quadro e criava uma sensação de profundidade e movimento; eu podia ver, entre as árvores, a canoa deslizando nas águas calmas em direção à casinha. No vidro, escrita em letras escuras, lia-se a frase: “Mãe, luz do lar”. Muitas e muitas vezes, eu parava entre as cadeiras da sala, e olhava esse quadro até transportar-me para lá, até sentir-me morando naquela casinha; agora, era eu quem remava aquela canoa! Imaginava-me lá, vivendo sem anseios, sem vontade de voar; eu não queria mais nada, queria só viver naquela casinha; aquela sim, que deveria ser uma boa vida! Lá não haveria “o choro e nem o ranger de dentes” — só o amor! Era assim que eu adentrava aquela imagem, sem pretender modificá-la, pois já era perfeita, sem intenção de descobrir os problemas dos moradores daquela casinha, suas angústias, suas dores...

Mas agora, depois de eu ter corrido mundos, atravessado espinheiros, de ter conseguido tantas cicatrizes n’alma, o que acontece se eu adentro as minhas figurações, estas imagens que brotam em minha mente, quando me demoro na cama além da conta? Não é a mesma coisa que adentrar a pintura bucólica da casinha na ilha, pois eu não desejo habitar as minhas imagens; agora, adentrar essas imagens é como explorar os meandros escuros de um rio subterrâneo que interliga várias cavernas, algumas espantosas, outras, sem nenhum atrativo. Seguindo rio abaixo, em cada caverna, eu detenho a canoa, ancoro-a na areia grossa que a água amontoou; olho à minha volta, desembarco, arrasto os pés na areia e observo os acidentes, as saliências das rochas; vejo pegadas de animais, examino restos que os humanos ali deixaram; observo os desenhos fantásticos das paredes da caverna e tento recriar a história que está contada nessas paredes. Depois, solto a canoa, embarco, e sigo em frente. Anseio por revelar a face oculta dessas imagens, desvendar-lhes os segredos, inventar-lhes alternantes modos de ser, tal como se eu recriasse à minha maneira, e não aquela que a vida implantou em minha mente, as cenas desse filme emocionante.

Falo um pouco do que trato em minhas narrativas: afirmo que observar uma teia de fenômenos do mundo é observar uma malha de nós, de entrecruzamentos que não têm, em princípio, nenhum sentido, e nem constituem uma história. É óbvio que tecer uma história a partir de uma trama de fenômenos só depende da história própria de cada observador; o nada que uns vêem, é o todo de que outros formam suas imagens, assim como num jogo de unir os pontos, alguns não atinam com a figura que jaz à espera da mão habilidosa e do olho inteligente do decifrador. Os fenômenos de que tratam as minhas narrativas se oferecem ao leitor como uma teia de pontos que podem ser interligados de modo a engendrar imagens que, de forma alguma estão à vista imediata, mas devem ser reveladas tal como a mão do escultor extrai da pedra bruta a escultura que ora vemos. Um provocante diálogo com as experiências do leitor — esta é a proposta das minhas narrativas.

Ao leitor são oferecidos quadros pintados com palavras, e não seqüências de fatos, e não casinhas bucólicas que ele possa habitar. Haverá cavernas em cujas paredes estão gravadas primitivas imagens que ele pode explorar, se quiser, ou, se nada houver que lhe atraia a atenção, passar adiante, mas nunca possuído de incólumes certezas. Haverá guerreiros fantásticos, objetos do tipo X, e até um tal de Eu-Buriti – pode um mineiro que não conhece a mística dos buritis? Não pode... Para não enfadar, serão apenas treze os contos absurdos.

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 01/06/2010
Reeditado em 10/06/2012
Código do texto: T2294258
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