XIII

Ele era um homem comum, tão comum que poderia passar despercebido por uma multidão de pessoas incomuns. Tinha um perfume comum e uma mente comum, mas nunca teve nenhum problema comum. Entre as coisas comuns que haviam passado por sua mente, e eram exatamente “coisas” que passavam em sua cabeça, havia uma em especial. Era tão comum que não teria motivo para contá-la a alguém. Não era pagar suas contas, nem mesmo se perderia o emprego e não era ser assaltado. Essas coisas eram sobre morte. Não a sua, nem a de alguém em especial. Muito menos pensaria em suicídio, pois esse é um pensamento que não costuma percorrer alguém tão quieto.

Caminhava um dia por sua rua num dia com sol e algumas nuvens, seus pés tinham um passo cadenciado e tocavam os buracos do concreto, então ele entrou em sua casa e achou que outro dia iria acabar. Eis que por mágica surgiram suas coisas. Ele se levantou e foi até o banheiro, e ao olhar-se no espelho viu que seu cabelo já não era mais tão abundante. Passou a mão pela cabeça calva e soltou um pequeno xingamento, entretanto não se alterou e voltou para a sala. Esta que tinha uma televisão e outras estruturas que costumam se ter em salas. O homem ligou o aparelho e sentou-se. Na tela apareciam algumas imagens sobre política e ele decidiu que a desligaria, contudo a televisão acabou por desligar-se sozinha. “Melhor” pensou ele. As luzes tinham se apagado também, mas não se importava. “Morte” o pensou. A escuridão não tinha feito aquele pensamento, ela havia apenas tirado sua atenção de todos os outros.

Sempre que se deitava, o homem comum tirava suas meias. Sempre que dormia sonhava. Quando se levantava não se lembrava. Colocava as meias e ia até a sala, mas um dia sua televisão não ligou e neste ele novamente pensou “coisas”. Em nenhum momento anterior pensara tão fortemente nisso. Não era um pensamento simples, mas não poderia escrever um tratado sobre isso. O que passava em sua cabeça já havia passado por outras, e na maioria dos casos não tinha verdade. Ele já havia ouvido falar muitas coisas sobre morte, porem sempre achara a Morte com sua foice a imagem que retratara mais fielmente esse conceito. “Só dá pra saber depois de morrer” dizia aos outros quando lhe perguntavam sobre estas coisas.

Houve um dia de sua vida que poderia ser considerado o principal, ou quem sabe apenas o maior. Fora convidado para um enterro. Isso não lhe dava alegria e nem tristeza, mas de alguma forma ele desejava ir. Vestiu-se como de costume e foi até o cemitério, e ao chegar pode reparar em quantas pessoas falavam sobre o morto. Nesse momento a coisa em sua cabeça não era mais apenas um pensamento, mas já havia se convertido em sentimento. “Foi um bom homem”, “Deus leva os bons para junto dele” e coisas do tipo era o que ele ouvia. Ele tinha a sensação de estar enterrado sob carcaças de peixes podres, e estas frases eram ditas por eles. Começara a entender o que era a morte, portanto sabia que todos diziam barbaridades sem sentido. Saiu do cemitério bastante nauseado, como era de se esperar, e foi até sua casa em uma longa caminhada.

Acordara no meio da noite pensando no que havia visto e não conseguiu dormir de novo. Levantou-se, vestiu-se e saiu. Em sua caminhada pensava sobre os mortos, não pensava neles como pessoas, pois se o fizesse estaria sendo imparcial. Chegou então ao cemitério e caminhou até uma das lápides, porem não o fazia por um motivo pessoal. “Sente muita falta dele?” perguntou uma senhora. Ele estranhou a pergunta, mas percebeu que estar vestido todo de preto poderia dar vazão a aquele tipo de pergunta. “Não o conhecia” respondeu. “Nunca os conhecemos de fato. Nenhum homem é honesto ou vil demais para escapar” comentou ela. “Isso faz da morte a única culpada?” perguntou ele enquanto esfregava as mãos por causa do frio. “Talvez a torne uma justiça mais correta, pois não julga apenas age”. Começaram a caminhar e a olhar as lápides. “Esses nomes não querem dizer algo, afinal aqui são todos anônimos” comentou a senhora andando com seus passos calmos. “A senhora teme?”. “Sim”.

O homem comum entrou em sua casa e continuou a pensar, e ele não temia. O maior temor dele era deixar de ser o que de fato era, afinal nem mesmo a morte poderia ser pior. Havia assim um grande problema, porque descobrir que se está certo e errado ao mesmo tempo sempre leva ao precipício. Desistiu de pensar e dormiu, contudo desta vez sonhava como se sua vida não fosse aquela. Era uma vida com muita esperança, mas jamais seria uma vida com algo de comum. Acordou e foi para a sala, e quando pressionou o botão da televisão esta ligou. Assistiu durante horas ininterruptamente, e não teve nem mesmo um sobre-salto quando viu que boa parte de sua vizinhança morrera, em um terremoto que ocorrera de madrugada. Saiu de sua casa e sentiu o cheiro que exalava de todo o lugar por onde passava até o trabalho, era o cheiro das angústias pessoais de cada um.

Ele nunca tivera nenhuma responsabilidade por coisas grandes, e nunca cobraram que ele fizesse algo que fugia às suas capacidades, mas algumas coisas tendem a mudar. Seu emprego não lhe serviria mais, pois todos haviam morrido, e desta pequena mudança na vida do homem veio a “coisa”. Ele deveria mudar de casa, mudar de cidade e quem sabe não mais morar em lugar algum. Seu emprego seria o mesmo? Não. Agora ele chorava como um homem comum e tiraria a vida sem pensar, pois estava em uma situação limite e era um homem comum. Ele finalmente conheceria... Contudo ele era um homem comum e esse tipo nunca conhece a si mesmo... Afinal ele não era um homem comum...

Rato da Montanha
Enviado por Rato da Montanha em 04/09/2006
Reeditado em 04/09/2006
Código do texto: T232754