Sentinelas

_ O que você está fazendo aí?

_ Pensando.

_ Pensando!?

_ Meditando; chame como quiser.

_ Eu pensei que anjos da sua classe não gastassem o tempo pensando.

_Não diga tolices, você sabe tão bem quanto eu que alguns de nós pensam até mais do que devíamos.

Dois bons amigos de longa data estavam parados bem no meio de uma movimentada rua chamada Uruguaiana, no centro do Rio de Janeiro. Naquele lugar passam pessoas para todas as direções, mas ninguém ali repararia na presença de dois seres celestiais com aparências comuns que cotidianamente os observava.

_ No que você está pensando?

_ Neles, é claro.

_ O que têm eles?

_ Olhe os rostos das pessoas ao redor e me diga se estão felizes. Estão nervosas, ansiosas e deprimidas.

_ Não me parecem deprimidas.

_ Bem, nem todas estão, mas certamente ficarão em algum momento.

_ Sei.

_ Muitos estão a um passo da violência.

_ Violência é?

_ Contra si mesmos, contra o próximo e contra nós.

_ Como assim contra nós?

_ Ora, não é obvio? Estão deixando de crer; para eles nossa gente não passa de uma fantasia bem montada e antiga.

_ Nem todos pensam isso.

_ Eu sei, mas é que parece que eles estão desconfortáveis dentro de seus próprios corpos; estão respirando ganância, egoísmo e maldade.

_ Dizem por aí que o deus do homem é o próprio homem.

_ Eu já ouvi isso; estou relutante em acreditar, mas não posso evitar de pensar que pode ser verdade, embora esse jamais tenha sido o plano original. O Eterno, Todo-Poderoso faz tanto por eles; por que não enxergam isso?

_ Talvez eles não possam.

_ O amor está esfriando na mesma medida que a maldade está se proliferando. Dia a dia.

_ Eles não têm culpa, quer dizer, você sabe; talvez tenham parte da culpa, mas estão se esforçando. São humanos.

_ Acho que sim.

_Você não devia ficar tanto tempo aqui. Quer trocar de posto comigo por uns dias?

_ Não. Gosto daqui; além do mais, conheço muitas pessoas que passam nessa rua todos os dias.

_ Você tem conversado com eles?

_ Sim. Gosto de conversar, sempre gostei.

_ Não percebem nada, não é?

_ Não. Fique tranquilo, sei qual é meu dever, amo o que faço e faço já há tanto tempo quanto você.

_ Então pare de se preocupar tanto.

_ Não posso, se eu deixar de me preocupar, deixo de fazer bem o meu dever.

_ Sei. E como as coisas estão?

_ Nunca antes eu vi tanta fúria quanto nestes últimos anos; é como se eles estivessem evoluindo e se degradando cada vez mais ao mesmo tempo.

_ Tenho ouvido muito isso de todas as sentinelas. Será que é...

_ Provavelmente.

_ Alguns mostram mais do que outros, mas em todos, em maior ou menor grau, eu consigo ver a marca.

_ E quanto aos filhos do reino?

_ Estão indo bem; digo, lutando bastante cada qual a sua maneira, mas você sabe como é, o mundo é um lugar hostil para eles.

_ Muito tempo atrás eu ouvi dizer que a marca da queda aumentaria com o passar dos anos e tomaria todo o corpo das pessoas.

_ Corpo e alma.

_ O futuro reserva muitas batalhas para eles, e estão muito despreparados; são tão frágeis que nem conseguem perceber isso.

_ Isso é uma profecia?

_ Minha classe não faz profecias. Só estou fazendo uma projeção.

_ Mas essa é a guerra deles, nós só ajudamos. Além do mais, nossa guerra começou bem antes. Temos muito trabalho por fazer.

_ O que mais dizem as outras sentinelas?

Ambos pararam de falar ao mesmo tempo. A multidão parecia um formigueiro humano e barulhento; as pessoas falavam ao telefone, conversavam entre si em grupos, algumas conversavam sozinhas, muitos pensamentos vazavam de suas mentes e chegavam aos ouvidos dos dois seres parados ali, mas não era esse o barulho que os estava chamando a atenção.

Alguns carros com motores barulhentos, outros nem tanto, chegavam e saiam devagar; muito ruído de aparelhos eletrônicos das lojas nos arredores; porém ainda não era isso o que os tinha aguçado.

_ Ouviu?

_ Sim.

Alguns murmúrios vinham trazidos pelo vento, mas não era possível precisar de onde e isso os estava intrigando, tinham a capacidade de distinguir qualquer som que já fora criado pelo homem e saber a exata direção de onde ele era produzido. Qualquer outro som inumano só podia significar uma coisa.

_ São eles.

_ São.

A linguagem era conhecida embora não fosse utilizada pelas classes celestes; era o idioma dos perdidos, traidores, renegados, decaídos. Muito tempo atrás, todos falavam um só idioma, mas desde a grande batalha nos céus uma facção que se separou da luz passou a falar um idioma diferente, todos ainda sabiam o que cada um dizia, mas as falanges falavam de um jeito enquanto que as legiões decaídas falavam de outra forma.

_ Eu tenho ouvido rumores de que um ou outro das primeiras legiões estão aqui.

_ Procurei averiguar isso, e é verdade; príncipes antigos.

_ Antigos quanto.

_ Antigos da época de Samael.

_ A serpente.

Ficaram em Silêncio.

Os murmúrios indistinguíveis não estavam mais presentes ali

_Quais serão os generais que cá estão? De quem estamos falando exatamente?

_ Ainda não sei, mas saberemos em breve; já ouvi o nome de Loki, o velhaco.

_ Esse nome não é da mesma época.

_ Não, mas ele é, o nome foi adotado mais tarde.

_ Quantas legiões ele ainda comanda?

_ Muitas.

_ Todos os mais velhos comandam muitas legiões, mas será que a nossa falange é que vai ter que segurar esse embate.

_ Provavelmente.

A presença deles aqui pode explicar essas coisas estranhas que estão acontecendo. Esses sons esquisitos.

_ Estão confabulando; tramando. É o que mais sabem fazer.

_ Desde o princípio, foram arrogantes, orgulhosos, mentirosos, maldosos, desobedientes e renunciaram voluntariamente o nome dado a eles, não quiseram mais ser chamados de anjos.

_ Sei; todos os traidores quiseram ser chamados de demôn...

_ Espere um pouco!_ interrompeu. Se algum dos anciões, príncipes traidores está por aqui, então logo logo nossos príncipes também estarão.

_ Quem?

_ Sei lá. Miguel talvez.

_ Será?

_Claro. Jamais perdemos uma batalha sequer. Não vai ser agora que vamos começar com esse mal costume.

_Você tem razão, mas não é por causa disso que eu estava pensando.

_ Então o quê?

_ Às vezes eu não os reconheço.

_ Quem?

_ As pessoas.

_ Por quê?

_ Porque estão cada vez mais arrogantes, orgulhosos, mentirosos, desobedientes. Já vi isso antes, e não foi bom.

_ Como já falamos meu irmão, a marca da queda se espalha; ela está fazendo seu efeito e vai continuar mais e mais, é como um veneno que já nasceu correndo nas veias deles, mais sedo ou mais tarde ele produz seus frutos. As coisas acontecem assim na terra como nos céus, lembra. Os traidores estão sempre influenciando as pessoas assim como influenciaram anjos anteriormente.

_ Ainda bem que estamos aqui.

_ Mas lembre-se, eles ainda podem escolher não dar vida o mal que carregam.

_ É o que tento lembrá-los.

_ Pois, é. Então eu já me vou por hoje.

_ Tenho outras sentinelas para visitar, em breve eu retorno com mais notícias.

Um deles saiu caminhando no meio da multidão, tão pacifica e comumente que poderia ser facilmente confundido com uma pessoa normal, até se perder da vista do outro que não fez questão de acompanhá-lo visualmente. Este por sua vez, ficou parado em seu posto, olhando na face das pessoas que passavam, bem dentro dos olhos de cada uma delas. Atento a tudo e a todos; cada sombra, cada pássaro, cada movimento. Alerta como sempre ficava. Como era sua missão.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 23/06/2010
Código do texto: T2336008
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