O VENDEDOR DE CAIXÕES
 
       Iniciava a década de 70. Ainda se via nitidamente o ranço da ditadura pelas ruas. Não se podia perambular à toa. Quem quer que estivesse nas ruas, deveria estar fazendo alguma coisa senão era detido por vadiagem. Mais importante que portar cédula de identidade, era ter sempre a mão carteira de trabalho (devidamente assinada) ou carteira de estudante atualizada, a não ser isso, era prisão na certa. Era impressionante como a população se conduzia durante o regime militar. Após as 22:00h, só se via na rua quem estivesse voltando do trabalho ou das atividades escolares. Ninguém ousava ficar pelas esquinas temendo ser recolhido pelas patrulhas.
 
       Meus pais haviam se separado, devido a incompatibilidades que não cabe comentar. A situação era difícil. Vivíamos de parca pensão e do que minha mãe conseguia na máquina de costura, muitas vezes varando a madrugada para dar conta de encomendas. Filho mais velho, sempre me preocupei em fazer alguma coisa que me rendesse alguns trocados para que assim pudesse ajudar em casa. Munido de um carrinho de mão feito com caixote de madeira, pegava de casa em casa revistas velhas e jornais, que trocava no açougue por algum dinheiro ou carne que levava para casa. Fazia isso sempre pela manhã pois a tarde estudava.
 
      Certa manhã, enquanto passava por uma rua à cata de jornais e revistas, li um anúncio afixado em um poste que me chamou a atenção. Dizia o anúncio: Precisa-se de rapaz sem experiência para trabalhar em agência funerária. O anúncio estampava o endereço para que os interessados lá comparecessem. Vi ali a oportunidade de arranjar o primeiro emprego, afinal, antes de completar dezoito anos era muito difícil arranjar colocação devido à obrigatoriedade do serviço militar. Achei que nem iria conseguir, pois ainda não tinha meu certificado de reservista com dispensa de incorporação. Além do mais eu estudava à tarde. Mesmo assim me aventurei e fui ao endereço da funerária. Lá chegando, fui atendido por um senhor franzino de vasto bigode, voz pausada, vestido com calça e casaco preto que me perguntou tão logo me apresentei e falei sobre a colocação: “Estás disposto a trabalhar? Não quero aqui nenhum preguiçoso.” Respondi que queria trabalhar, que precisava muito para ajudar minha mãe. O trabalho consistia em sair de porta em porta oferecendo caixões de enterro para venda em planos de financiamento parcelado, facilitando e proporcionando comodidade para as famílias, evitando o transtorno dos momentos difíceis por ocasião do falecimento de entes queridos. Eu também cobraria em domicílio parcelas de pagamento de vendas já efetuadas. Não teria salário. Eu receberia comissões pelas vendas e pelas cobranças e o pagamento seria diário no fim de cada jornada. Não precisaria cumprir horário integral, devido aos estudos. Achei interessante e depois de algumas orientações sobre o serviço, iniciei a função.
 
       No dia seguinte lá estava eu a bater palmas na porta da primeira casa: “ôh de casaaa!!!” logo um cachorro correu latindo para o portão e a seguir uma senhora apareceu me perguntando o que queria. Respondi que representava uma empresa funerária e estava a oferecer um plano tentador para quem estivesse interessado em adquirir um caixão. A mulher sobressaltada deu um pulo para trás e exclamou: “Passa-te fora daqui, agourento, que não quero morrer tão cedo!” De nada adiantou eu tentar explicar então resolvi seguir adiante. E assim aconteceu nas casas seguintes. As pessoas manifestavam flagrante aversão a simples referência da morte. Meu primeiro dia foi desanimador. A única compensação foram algumas poucas cobranças que consegui fazer, que me renderam alguns trocados de comissão, o que me possibilitou antes de ir para casa, passar na padaria e comprar pão. Chegando em casa falei para minha mãe: “hoje quem comprou o pão fui eu. E com meu dinheiro”, completei orgulhoso.
 
       Nos dias seguintes aconteceu tudo igual. Não consegui nenhuma venda e só algumas cobranças. Já estava desanimando e até mesmo pensando em desistir do emprego. O patrão vendo que eu me esforçava e não conseguia nada, me animou a prosseguir pois acabaria conseguindo. Disse que era assim mesmo, afinal nem todo mundo quer comprar caixão de defunto. Insisti mesmo porque não tinha outra alternativa. Saí da loja para mais um dia de tentativa e fui para a rua. Na primeira casa, nada. Na segunda casa a mesma coisa. Na terceira casa finalmente me animei pois uma senhora pelo menos resolveu me dar atenção. Ao explicar o que estava vendendo ela me pediu alguns minutos e, debruçando-se sobre o muro, chamou a vizinha, dizendo-me que ela também se interessaria. Chegando a vizinha, pus-me então a expor a publicidade dos produtos. Munido de um catálogo, fui mostrando fotos dos modelos dos caixões e explicando as qualidades de cada.
 
     Este modelo, senhora, é um dos mais modernos. Tem falhas ao longo das laterais para proporcionar ventilação interna. Estofamento anatômico para a acomodação do corpo e almofada em forma de pequeno travesseiro para o repouso da cabeça. O conforto interno é garantido. Externamente possui seis alças para que durante o cortejo fúnebre não haja o perigo de alguém soltar e o caixão cair. Sempre haverá mais cinco carregando. Existe um visor de vidro por onde os parentes e amigos poderão ver seu rosto e a senhora pode ficar despreocupada: é bem vedado, de forma que se chover a senhora não molhará o rosto. A madeira com que o caixão é confeccionado é de primeira e antes de dois anos após ser enterrada a senhora não se preocupe que nenhum verme entrará para devorá-la. Acompanha como brinde todos os apetrechos para o velório incluindo as velas. Os apetrechos serão devolvidos após o enterro. Não precisa devolver as velas. É cortesia.
 
      A mulher ficou interessadíssima e fez a encomenda. Expliquei que ela poderia pagar em parcelas e ela concordou. Incentivada por ela, a vizinha relutou mais acabou se convencendo e também fez um plano de financiamento para seu caixão. Depois de cumpridas as formalidades, perguntei a dona da casa se queria que entregasse o seu caixão em sua residência, e ela então consultou a amiga como preferia, ao que ela respondeu: “Deus me livre! Deixe guardado lá mesmo moço. Ter um caixão de enterro dentro de casa é mau agouro. Quando eu morrer minha família manda buscar na sua loja. E espero que não precise tão cedo” As duas então decidiram assim: pagariam os caixões e deixariam a guarda a cargo da loja e quando fosse necessário os familiares solicitariam a entrega. Agradeci a compra e saí daquela casa feliz da vida. Havia feito minha primeira venda. E vendi logo dois caixões de uma só vez. Depois veio outro dia e mais outro, mais outro... Mais isso é outra história.
 
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Valdir Barreto Ramos
Enviado por Valdir Barreto Ramos em 17/08/2010
Reeditado em 18/08/2010
Código do texto: T2444033
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