O Dilema de Dileno.

Jamais esperaríamos, eu e aquela cambada de vagabundos, que o Dileno acabaria como acabou.

O cara não tinha nada daquilo, não demonstrava qualquer aptidão para o negócio, nem mesmo jeito algum para a coisa. E olha o que se sucedeu!

Até agora não formulamos respostas satisfatórias para as perguntas atinentes a Dileno. É uma incógnita entre nós, que em tempos idos fomos seus melhores amigos. O cara era mais louco que todo mundo junto. Bebia e destruía tudo que estava a sua frente, arrancando placas de sinalização no dente. Modo de dizer, é claro, pois muito do que dizem esses delinqüentes que nos acompanham não passam de ilusões literárias de ébrios habituais. Alguns ainda mantêm-se assim, outros partiram para ganhar a vida, casaram-se, conseguiram bons empregos, foram promovidos, e coisas do gênero, do cotidiano sarnento que vive a se esfregar em nós.

Outros foram até mais longe e acabaram tombando em curvas fechadas, ainda jovens; jovens que achavam que a vida jovem era o bastante, que não valia a pena ser velho. Pobres diabos! Quando me recordo de alguns deles, de suas fisionomias assustadas, seus olhares arregalados, fico meditabundo...

Muitas, muitas internações! Muita loucura acumulada num espaço muito pequeno de mente. Surdos nas alturas do rock e cegos pelas paixões juvenis que lhes davam amparo para prosseguir... Sucumbiam feito moscas envenenadas por DDT.

Como sobrevivente, posso falar bem do assunto. Passei por poucas e boas, confesso, mas nunca vi alguém levar a coisa tão a sério como o Dileno. E também não vi alguém se esquivar tão profissionalmente dos golpes como esse cara.

Nasceu para ser pugilista da vida. Quem o vê hoje , em algum noticiário do Nepal, o que é raro por aqui, não consegue assimilar que ali vai o Dileno.

Na verdade nem eu, até encontrá-lo de surpresa no fedorendo “Algoz” da Rua Conselheiro Furtado, Vila Matilde, bairro onde perdi as estribeiras.

Olhou-me, cumprimentou-me apenas com um movimento de cabeça, e saiu, meio que esbarrando no lado esquerdo do portal de saído do “Algoz”.

À primeira vista não o reconheci. Vi aquele sujeito estranho me cumprimentando com um gesto de cabeça e sair. Mas parece que um estado em minha cabeça fez com que saísse até a porta e visse o andar do sujeito. E era de fato o imbecil do Dileno. O mesmo modo de andar feito tronco de árvore, duro como tal, disforme, dando a impressão de que portava alguma mazela física, como hérnia de disco ou dor de barriga. Parecia um daqueles travestis bonecos de Olinda.

Quantas e quantas vezes não fomos obrigados a arrastar aquele corpo macilento e flácido dos cantos dos bares onde jazia desmaiado, evitando, assim, que fosse pisoteado pelos demais freqüentadores embriagados. E quantas vezes não fomos nós mesmos arrastados por ele!

O cara era um monstro. Com ele não havia outra saída. Quando o arrastávamos iam também sendo levadas mesas e cadeiras, com seu corpo batendo em tudo pela frente. Muitas vestimentas foram perdidas nessas fases. Vi muitos arrastand0-se pelos muros ate seus lares. Chegavam em carne viva. E mesmo sangrando, os caras iam para suas respectivas camas, não se importando que horas eram e se tinham compromissos no dia seguinte.

Na tarde em que cruzei com o Dileno no “Algoz”, nem de longe imaginava que um dia voltaria a revê-lo. Pensava que tinha se perdido como muitos. Além de pálido, pelo que pude ver de relance, aparentava um homem doente. Doente da alma. Tinha o intenso desespero que carrega nos olhos os seguidores de Sófocles, Schopenhauer, Nietzsche, Bukowski e Thomas Hardy. Era um daqueles em que se pode dizer: antes não terem nascido! Autores que Dileno já lia naquela época. Pobre do sujeito que se embrenha nos meandros da corrente pessimista!

Dileno desapareceu do mapa por volta de 1.986, quando contava aproximadamente trinta anos de idade. De lá pra cá somente essa aparição misteriosa no “Algoz” e a história de seu garçom, que jurava que o mesmo confessara-lhe sua situação atual à época.

Dileno era um dilema!

A história pareceu-nos tão absurda que soltamos gargalhadas vorazes. Não da história em si, que era incrivelmente engrandecedora, mas da maneira como o garçom, que se chama Austragésilo, empregou as palavras. Ele não sabia interpretar algumas passagens, o que tivemos que completar a fase em muitas ocasiões. A cada passagem um tapa em suas costas e algumas gargalhadas. Parecia até um amigo de infância que tinha um sorriso patológico, que quando explodia em gargalhadas dentro da sala de aula a aula tinha de ser interrompida e o garoto retirado às pressas para se curar do cesso. Era assustador para todos ver aquele moleque dando uivos, sorrindo e chorando ao mesmo tempo. No começo ficávamos num canto, paralisados com o que víamos. Depois tudo normalizou-se, e pensávamos naquilo como sendo uma necessidade fisiológica.

A história que o garçom Austragésilo tentava nos contar, segundo ele, nas palavras do próprio Dileno, continha situações tão rebuscadas que era impossível manter o mesmo tom.

Algumas passagens revelavam que Dileno resolvera de uma hora pra outra sair pelo mundo, no outono de 1.986, a pé, para bem longo da multidão desvairada, sem destino, e que dificilmente retornaria ao status quo ante.

Quanto ao sumiço de Dileno naquele fatídico 1.986 todos sabíamos, só não imaginávamos o motivo nem o que viria depois.

Dileno não tinha problemas com a justiça muito menos com a família. Vivia uma vida suficientemente provida financeiramente, com saúde aparentemente perfeita, e, à primeira vista, um cidadão comum. Tinha lá seus vícios, que eram muitos, mas nada forte o suficiente capaz de fazer com que faltasse do bar na tarde seguinte.

Rebuscando nossas parcas lembranças, nada levava a crer que Dileno tinha tendências fugidias.

Para nós o sumiço de Dileno não passava de uma fuga. Mas, fuga pra onde? E por que?

Nada mais se sabe até o presente momento. Afinal, o Dileno sempre foi um dilema...

Cristiano Covas, 18.02.05.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 25/08/2010
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