Jukebox plays Tejo Remix

Estava mesmo muita gente no barco. O capitão avisava apenas para se sentarem que as ondas poderiam subir um pouco acima do normal, o que teria as suas vantagens pois no alto da onda poder-se-ia tocar o Céu.

Pensávamos que o homem devia ter bebido um copo a mais. Ouviam-se gargalhadas no altifalante e não sabíamos se provocar um motim e mandá-lo dormir com os peixes ou agradecer-lhe pelo aviso e esperar ali quietinhos.

Lembro-me de um senhor, já com alguma idade, que se mantinha quieto, de olhos fechados e a murmurar coisas sem nexo. Sempre que se calava o mar acalmava e o rio parecia uma imensidão fecal de paz a perder de vista.

Começou o burburinho e afinal haviam todos decidido que o senhor, já com alguma idade, se devia calar para sempre.

Sem saber porquê peguei num extintor que tinha ali à mão e apressei-me a bater-lhe com ele na cabeça de alguém. O extintor transformou-se numa jukebox e começou a escutar-se Camarón de la Isla. Sem controlar a vontade, comecei a bater as palmas das mãos e as solas dos sapatos e um sapateiro e ainda um macaco fizeram o devido encore.

O senhor já com alguma idade sussurrou algo e o barco estremeceu. Todos paralisaram, menos eu que continuava numa onda de música cigana.

O capitão deu a ordem, num tom mais áspero

- SENTEM-SE! IMEDIATAMENTE!!!

mas nem por isso se deixaram de ouvir gargalhadas no altifalante.

Então o mito do polvo gigante inventado numa noite de nevoeiro num carro estacionado em Belém sem vista para a outra margem, materializou-se em volta do barco, com muita gente, onde cada passageiro ia ficando possuído pelas músicas que iam saíndo de jukeboxes que apareciam do nada após, por algum motivo, perturbarem o senhor já com alguma idade.

Entretanto o polvo não tinha forças para esmagar o barco tal o índice de poluição que, pasme-se, era demasiado para as próprias bactérias cuja sobre-população atingira níveis impensáveis num rio tão amado pelos fadistas, saudosistas muitas vezes sem saberem muito bem do quê.

A salada russa instalada instalada no barco levou o senhor já com alguma idade a falar. Então uma onda gigante avistou-se ao longe sem que ninguém se apercebesse que tudo não passava de mais uma versão pirata de clandestinos que sobreviveram aos mares de África, mesmo ali no sul de Espanha e que vieram dar o toque de finados ao pobre polvo gigante, que rodeado de nano-partículas que imitavam bactérias coliformes fecais, dava os últimos suspiros sem que os ocupantes do barco se apercebessem de nada, enquanto no inferno surreal das jukeboxes que haviam posto cem passageiros a dançar cem danças diferentes enquanto o capitão se atirava ao rio sem cuecas, sem sequer chegar ao outro lado do rio, onde Lisboa era apenas luzes e mau cheiro distante.

Entretanto uma jukebox apareceu no Céu paralisando a vida de milhões de almas penadas e o barco desapareceu no meio da imensa canção despoletada por uma gaivota que se suicidara como uma kamikaze contra o espelho mágico que tudo desencadeava.

Era uma versão entrançada de 'As tears go by', com imensos Bogarts em pose incorrecta de cigarro no canto da boca, enquanto outras tantas Ingrids dançavam de ventre desnudado a nova remix vinda do buraco do Ozono para acabar de vez com o Tejo.

Os passageiros do barco sobreviveram ao acidente e foram todos distribuídos pelas juntas de freguesia mais próximas do Tejo. A mim tocou-me Belém porque sou o autor e quero o centro das atenções.

As jukeboxes transformaram-se em maços de notas de 500 euros e a economia paralisou com os depósitos maciços em contas off-shore na conta do senhor com alguma idade.

Manuel Marques

28-12-2008

(com alterações significativas mesmo antes da publicação)

Manuel Marques
Enviado por Manuel Marques em 26/08/2010
Reeditado em 15/04/2014
Código do texto: T2460000
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