Zona do Crepúsculo.

Escutou o som do motor do fusca esverdeado, ou azulado, do amigo Dom ainda na esquina, e olhou pela abertura estrategicamente colocada na entrada de seu escritório.

Era sim a quinquilharia ambulante do amigo, que quando lhe via ia logo soltando aquela verborréia sem fim sobre ideais filosóficos, políticos e religiosos, argumentos desconexas, gerados pelo excesso de devaneios ingeridos durante seus últimos vinte anos de vida.

Já o Caboclo, ah, aquele não adiantava contrariar, quando silenciava, era porque havia “capotado”; aí ninguém, nem o corpo de bombeiros, era capaz de acordá-lo. Era comum terem de arrastá-lo desmaiado até o alpendre da casa de seus pais. Um alcoólico pertinaz! Não se movia sem estar com os pneus devidamente calibrados, a mente inebriada, encachaçada.

Dormia em todo tipo de lugar, dependendo apenas de seu estado etílico. Uma vez dormiu num colchão imundo no rancho Zona do Crepúsculo, e acordou sem parte da cartilagem da narina esquerda, que havia sido carcomida pelo rato “monstro” , que habitou o local por anos.

A partir de então, não obtendo dinheiro para aplicação de uma espécie de prótese, passou a ser visto sempre com uma massa tapando a parte carcomida. Alegava para os desavisados que se tratava de pomada anti-cravos, material que lhe sustentava o restolho de dignidade que se iam caindo aos pedaços em suas empreitadas atribuladas.

O Rancho Zona do Crepúsculo teve sua história iniciada provavelmente no fim da década de 80, quando freqüentado por bêbados de todos os gêneros, pessoas excluídas da sociedade local, que ali se reuniam para praguejarem contra o mundo e se embriagar até o delirium tremem; e teve seu apogeu na segunda metade da década de 90, quando freqüentado por jovens universitários (universotários), que tagarelavam asneiras a respeito de Deus e dos homens, numa pseudosapiência neurótica, muitos dos quais foram perseguidos por seres imaginários, como o tal do Curicakówski, que entrou num estado paranóico, a ponto de se achar, a qualquer hora do dia ou da noite, e em quaisquer circunstâncias, perseguido por familiares e pessoas que queriam falar mal de sua vida.

Uns outros, esses sim encontram-se hoje em dia internados, em sua maioria, no Allan Kardec, em Franca-SP, se achavam perseguidos por entes sobrenaturais, extraterrestres ou duendes malignos.

Um deles foi o tal do Coelho, um negro matreiro que vez por outra saía pelado pelas ruas gritando que Raul Seixas não havia morrido, que na verdade tinha descoberto uma fórmula mágica e se transformado num gnomo, e que estaria “agora” em seu quarto, e que quem quisesse vê-lo era só acompanha-lo (em sua loucura, imagino). Alguns de fato iam, como fiquei sabendo.

Coelho houve outro, que de tanto inalar pó de giz, imaginando ser outra substância, acreditou em sua “chapação” e montou uma pequena fábriqueta no litoral paulistano. Uns acreditam tê-lo visto lecionando para alunos do 1.º Grau numa escola pública no interior da Bahia, inalando pó de giz três vezes ao dia, feliz da vida e mais pálido que o próprio giz.

O acesso ao rancho sempre fora restrito aos “Macacos” do Sr. Scott F., o qual não se sabe atualmente o paradeiro. Esteve por um tempo se bandeando pelos lados da Capital paulista, freqüentando antros que nem o capeta teria coragem de freqüentar, fugindo de tudo e do Mundo, colecionando contravenções e surrupiando cinzeiros e outros petrechos que, nos seus dizeres, “dão bandeira por aí”. Não teve quem não foi vítima de seus golpes, principalmente quando lhe empregavam “verbas”. A nóia logo viria, poderiam ter certeza!

Uma coisa não se pode deixar de dizer, o Sr. Scott F. era um exímio gurmet, daqueles de causar água na boca, desde que não o vissem preparando o alimento. Os condimentos que utilizava eram sua especialidade secreta, não permitindo que ninguém os visse. Imaginam uns que se tratavam de caquinhas de nariz, que salgavam melhor o alimento. Outros dizem que Sr. Scott F. gostava também de untar certos pratos com sua baba pastosa, de maconheiro antigo, pois assim o alimento adquiria uma coloração mais apetitosa. Era um deleite ver toda “aquela criançada” bêbada, em madrugadas delirantes, sorvendo os suculentos pratos elaborados por Sr. Scorr F. A fome era tamanha que não se importavam com cacas, cascas e excrementos. O que realmente importava era a pimenta e a larica.

Fiquei recentemente sabendo que alguns dos que freqüentavam a Zona do Crepúsculo e ingeriram os alimentos do Sr. Scott F. não tiveram a sorte dos demais. Um deles foi o tal do Japagirl, que, após comer um frangão, sofreu uma convulsão e encontra-se até hoje com a face direita do cérebro paralisada devido s uma lesão no córtex.

Esse Japa outrora também deu o que falar. Era um dos caras que mais fumavam na história do mundo. Teve um dia que desmaiou às sete horas da manhã, numa padaria, quando se preparava para acender seu qüingentésimo cigarro em 24 horas. Estava azulado quando caiu no chão e principiou um ataque epiléptico, chocando quem se encontrava ali para comprar pãozinho matinal. Babou tanto que a panificadora teve de fechar as portar por quase duas horas, para limpezas, prejudicando grande parte do lucro do dia. O dono ficou puto da vida e nunca mais quis saber desse tal Japagirl adentrando em seu estabelecimento.

É bom frisar que o Japa não morreu de câncer. É hoje pastor evangélico e trabalha na recuperação de ex-fumantes. Mas vira e mexe dá um tapinha na macaca...

Cristiano Covas, vidas ficcionais, 06.06.08.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 14/09/2010
Reeditado em 05/06/2013
Código do texto: T2497030
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