A VELHA SENHORA E O JOVEM

Pelas bancadas de verduras e legumes, passavam alguns retardatários, os fregueses da xepa. Era quase noite e o sol já se ia para o repouso diário. A velha senhora recolhia quase todo o trabalho de colheita do dia anterior. Talvez não tivesse se esforçado o suficiente em oferecer aos transeuntes a mercadoria. Tudo por causa daquele rapazola a expiá-la com os seus pequenos olhos negros. Logo no primeiro olhar sentiu algo de misterioso, poderia ser um anjo ou, quem sabe, o próprio demônio. Sabia-se idosa, não tanto pelos anos, mas pelas labutas no campo. O sol escaldante ressecara a sua pele que um dia fora branca e agora um couro curtido. A vista cansada ainda lhe dava uma réstia de luz até mais intensa do que parecia à primeira vista. O pobre corpo, coitado, é que se ressentia dos anos. O dia todo ali estivera ele, aparecendo e desaparecendo, sempre a observá-la. Devia ser mesmo o “demo”. Imaginem! Ela sentir coisas que já havia esquecido há anos! Eram como pinicões nas carnes, carnes semimortas. Ele a olhava e havia serenidade naquele olhar quase sorridente. Era o demo mesmo, agora tinha certeza. Só podia ser! Ele com olhar fixo nela e ela a sentir repuxo naquele lugar secreto, quase esquecido. Tratou de amarrar os sacos de plásticos cheios de frutas e vegetais, chegasse a casa poria as folhas na bacia de água e no dia seguinte venderia aos vizinhos, a preços módicos. O problema eram os legumes, pesados demais para os seus braços cansados.

— Posso ajudá-la?

— Não! Muito obrigada. Estou acostumada.

— Vamos para o mesmo lado...

— Que história é essa? De onde você saiu?

— Vim ver as terras que me foram deixadas pelo meu avô.

— Quem é o seu avô? — perguntou assustada. Naqueles segundos que antecederam, havia cogitado sobre muitas possibilidades, menos essa de “avô”. Seria neto do seu marido? Não duvidava, ele fora um homem viciado em mulheres. Não tiveram filhos juntos, mas quando morrera, apareceu um montão de gente dizendo-se seus filhos a lhe tomarem as terras. Agora surgia esse neto! Santo Deus! Seu único pedacinho de chão, mal dava para plantar umas coisinhas para sobreviver! Sentia-se tão esgotada que aceitou a ajuda do anjo ou demônio.

Não deu outra, era realmente o neto do seu marido. Nessas circunstâncias, nada a fazer senão recebê-lo em seu casebre. É, porque a casa grande, esta, perdera para os filhos do infeliz. Todos registrados direitinho, em cartório, e ela, mesmo com pose de dama, nunca fora registrada no papel como sua mulher. Fora vendida. Os pais, retirantes, não vacilaram em negociá-la, menina de doze anos, com o velho de sessenta. Para o coronel do campo, exibir uma menina como sua esposa era um luxo para poucos. Bonitinha, peitinhos arrebitados, agradara ao coroa. Muitos lhe tinham inveja. Os anos passaram e ela, respeitada mulher de agricultor de muitas terras, era quase feliz. Lamentara não ter tido filhos, mas tinha a consciência de ter sido bem prestativa na alcova. A morte do marido abriu os olhos dos homens solteiros da circunvizinhança, todos desejosos do cabedal da viúva e também do seu corpinho jeitoso. Retornou ao jovem que lhe sorria escancarado com fileira imensa de dentes brancos. Desejou beijar aquela boca. Sacudiu a cabeça, precisava espantar os velhos fantasmas do corpo. Rapidinho, fez uma sopa de legumes, o que agradou ao jovem. Um anjo, alto, magro, rosto de menino, mas com um corpo que prometia. Moreno bonito! Ela nunca tivera um namorado, se o tivesse, escolheria aquele. Sentados, à velha e pequena mesa da cozinha, o silêncio valia ouro, ele calado, falando somente com os olhos a observá-la corpo inteiro, e ela, sempre com aquelas queimaduras entre as pernas. Nunca mais sentira aquilo, desde a morte do marido. Mirou-o, mirou-o, e, após certo tempo, disse-lhe que lhe entregaria o seu pedacinho de chão, mas com uma condição: que ele a levasse dali; cuidaria dele, lavaria a sua roupa, arrumaria o seu quarto, faria gostosas saladas...

— Não sou vegetariano, gosto de carnes...

Sentiu que o olhar dele percorria as suas carnes. Esqueceu-se até que já não era jovem.

O rapaz era poeta e não estava interessado no seu minúsculo chão. Viera por insistência do pai, o único que, só agora, soubera da morte do velho.

— Se eu fosse jovem, cuidaria dos seus livros, aprenderia a ler e sairia por aí, declamando os seus poemas...

— Seria a namorada...

Novos arrepios, mas não era jovem. No dia seguinte ele se foi, mas antes, passou no cartório e transferiu a posse da terra para ela. Agora a terra era sua e o verso “seria a namorada”, também!

Rita de Cássia Amorim Andrade
Enviado por Rita de Cássia Amorim Andrade em 30/09/2010
Código do texto: T2529237
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