NASCIMENTO PARA O MUNDO REAL

Estávamos no final dos anos 70, creio que 77 ou 78.

Vivia uma fase extremamente difícil, quando me defrontava com conflitos interiores intensos.

Eram muitos os problemas existenciais que me assolavam a alma, e que envolviam família, religião, estudos, vida amorosa e tudo o mais.

Filho caçula (rapa do tacho) de uma família em plena ascensão econômica, adepta aos princípios protestantes, onde minha diferença de idade para com o meu irmão mais velho é de 22 anos, era portador de um espírito rebelde e descontente, o que me levava a estar sempre contra todos e contra tudo que era convencional, denotando a existência de um verdadeiro choque de gerações, o que fazia que eu me tornasse, inevitavelmente, a ovelha negra da família, causando freqüentes distúrbios.

Inquieto e ávido de novas experiências, num processo alucinado de fuga, não me cansava de procurar novas aventuras para saciar minha gana por prazeres mundanos, o que me mantinha envolvido com bebidas alcoólicas, cigarros, festas, mulheres fáceis, orgias e tudo que é de conteúdo efêmero e excitante para os sentidos.

Pai severo, que conseguira tudo na vida com muita luta, disciplina e boa vontade, que tinha idade de ser meu avô, conseguira impor tal filosofia aos filhos mais velhos e intentava fazer com que eu seguisse o mesmo roteiro, me colocando para trabalhar desde os dez anos de idade, criando em minha alma-criança enorme revolta e descontentamento, o que dava margem à cada vez maior rebeldia e excessos de toda ordem.

Eu, que já havia passado por todas as etapas, desde os mais subalternos serviços na empresa de nossa família, conforme era o regime imposto pelo meu pai e pelos irmãos mais velhos, acabara de voltar de São Paulo, onde realizara importante curso de produção junto a uma empresa americana, e isso reascendeu em mim uma fagulha, revelando um espírito cheio de auto-estima - que na verdade tinha mais vaidade do que ideal - para assumir importante área do setor produtivo da fábrica.

Era uma empresa de confecções cheia de vida, energias e esperanças, onde não se ouvia o tratamento “senhor”. Todos eram tratados por você, como uma grande família, com exceção do meu Pai, que já idoso e adoentado era acatado como um verdadeiro patriarca, o pai de todos que o respeitavam e ouviam seus sábios conselhos. Trabalhávamos juntos, festejávamos juntos, pescávamos juntos; contudo, o que mais fazia o sucesso da empresa, além do espírito empreendedor, era a grande alegria que reinava no coração de todos, num ambiente onde se vivia fraternalmente, a ponto de muitos chegarem ao trabalho às vezes meia hora antes do inicio das atividades, ou ficarem horas após o expediente sem a menor preocupação com horas extras ou vantagens... apenas pelo simples prazer de estarem envolvidos naquele ambiente vibrante, cheio de amizade e luz.

Tudo corria bem. A empresa batia recordes após recordes de produção e de vendas.

Eu, cheio de vontade de mostrar minhas novas qualidades, nos meus vinte e poucos anos, colocava todo o meu potencial e aprendizado na nova função.

No entanto minha ansiedade e inexperiência não permitiram que eu galgasse os degraus necessários para inserir as mudanças que almejava, o que certamente estabeleceu um conflito junto aos que ainda traziam concepções e culturas profissionais antigas.

O conflito foi tomando proporções cada vez maiores a ponto de desarmonizar o sistema, fazendo com que meus irmãos, sem outra alternativa, me tirassem da função, antes que a situação se tornasse mais crítica, e que tão pouco tempo durara.

Aquilo foi como se o mundo desabasse sobre mim. Não obstante tivesse bem intencionado e com uma visão ampla e progressista, não tive o mais importante: a maturidade e a sabedoria para impor as mudanças e inovações que pretendia... O choque foi demasiadamente grande.

Depois de algum tempo de muita depressão, recebi a proposta de um de meus irmãos, diretor da empresa, para fazer viagens de supervisão de vendas. Sem outra alternativa, aceitei.

As primeiras viagens foram feitas com os vendedores, ora com um e ora com outro.

Eu, que sempre fui ávido de novidades, passei a conhecer este novo e itinerante mundo: Cada dia um hotel, um restaurante, um ambiente, uma situação, uma paisagem, tudo envolvido com muitas aventuras e uma perigosa e ilusória sensação de liberdade.

Fui tomando gosto pela nova vida.

Eram viagens às vezes curtas de dois ou três dias, outras vezes longas de vinte, trinta dias...

A alegria, no entanto, durou enquanto novidade. Logo em seguida, passei a realizar viagens, sozinho.

Sem me perceber, fui me tornando estranho, quieto, fleumático e perdendo o brilho que possuía.

Idéias estranhas foram minando os meus pensamentos, tais como suicídio ou fugir para lugar bem distante...

A insônia começou a freqüentar meu leito. Manias e superstições passaram a fazer parte de meu roteiro diário.

Eu, que nasci num ambiente religioso, de seguimento protestante, cheguei a atribuir ao diabo ou a forças demoníacas tais desconfortos e medos.

Um sentimento de culpa enorme passou a invadir meu íntimo, o que foi me tornando uma pessoa pusilânime e insegura.

Quando voltava das viagens, evitava os amigos, me confinava em casa ou me refugiava sozinho na beira de um rio, onde permanecia horas e horas tentando entender os desvarios e a incompreendida sina de minha vida.

Passei a ler freneticamente a Bíblia no intento de reverter a incômoda situação... Mas tudo era em vão. Ia algumas vezes numa igreja, ora noutra e nunca me encontrava.

Visitei leitoras de sorte, li dezenas de livros de auto-ajuda, mas nada devolvia minha luz que esmaecia pouco a pouco.

Fui me afastando da família, dos amigos, da sociedade e, sobretudo, de mim mesmo.

De repente me vi perdido de tudo e de todos... Não sabia mais o que esperar.

Certo dia me foi dado um roteiro de viagem enorme para fazer acertos e recebimentos em diversos Estados, viagem que deveria durar pelo menos uns trinta dias.

Um tanto desanimado, e sem outra alternativa, tomei a estrada para aquela que pensava ser mais uma jornada monótona que me levaria ao nada, como sempre.

Depois de passar por algumas cidades, e visitar estabelecimentos comerciais fui dormir num hotel.

Aquela semana me sentia extremamente perturbado e depressivo.

Lembro-me que não consegui me levantar no dia seguinte e fiquei na cama do hotel até o meio dia, hora que deveria entregar o aposento, depois de uma noite em claro, onde senti estranhamente a cama balançar e dar solavancos.

Depois do café, tomei o carro e peguei a estrada quase que como um alienado.

Fumava um cigarro após o outro, cerca de trinta por dia.

Naquele dia não consegui fazer nenhum serviço. Queria sumir, entrar numa gruta, desaparecer, tal o mal-estar e perturbação que envolvia minha alma.

Viajei quase que sem rumo toda a tarde e quando começou a escurecer, me deparei com a placa que mostrava que a cidade de Tupã, no Estado de São Paulo estava próxima.

Entrei na pequena cidade interiorana que já estava envolta pelas primeiras sombras da noite e não foi difícil encontrar um pequeno hotel no centro da cidade.

Minha mente insistia em me sugerir, desde o dia anterior que procurasse um centro espírita.

No entanto, isso para mim seria a maior traição para com Deus que pudesse conceber. Era o mesmo que desistir Dele e procurar a ajuda com o diabo, tal a minha ignorância e condicionamentos errôneos, arraigados e primitivos.

No hotel tomei meu banho e me dirigi à portaria, onde perguntei se a cidade possuía um centro espírita. Lembro-me o quanto foi difícil fazer esta pergunta ao porteiro... Da mesma forma que não me esqueço de como ele me olhou de cima a baixo mediante a pergunta...

Mas se o Deus que tanto procurei na Bíblia – concatenava comigo mesmo - não podia fazer nada por mim, que outra alternativa havia senão procurar um centro espírita, que até então entendia ser a casa do diabo?...

Tomei o carro e segui em direção à região que o porteiro me indicara.

Alguma coisa parecia levar o meu carro a rumo desconhecido.

Fui me afastando do centro da cidade, e cada vez mais me via entre casinhas humildes nos extremos da periferia, em ruas de terra e sem calçadas, iluminadas por postes de madeira com luzes fracas e amareladas.

Às vezes, num extremo de sentimento de culpa pensava comigo mesmo: “o que é que estou fazendo, meu Deus, me perdoe! “, e pensava em voltar atrás em minhas resoluções.

Quando já havia cerca de uns quarenta minutos que perambulava por aqueles bairros longínquos e escuros, percebi ao longe uma pequena luminosidade que me chamou a atenção, no final da rua em que trafegava.

Algo estranho me forçou a seguir em direção àquele ponto.

Quando me aproximei, vi que sob o velador da pequena luminária estava escrito: "Centro Espírita", em letras rudes e defeituosas, demonstrando ter sido feita por algum leigo ou amador.

Parei um tanto receoso o carro e notei ao fundo de um longo corredor, um ambiente mal iluminado, onde pessoas estavam assentadas formando uma pequena platéia, sugerindo que um culto ou ritual qualquer estava por começar.

Num misto de curiosidade e medo, não sabia se batia em retirada ou arriscava adentrar aquele ambiente obscuro, que sugestionava as mais estranhas idéias em minha mente.

Sentia-me como Judas antes de trair o seu Senhor.

Enquanto estava nesse dilema de decidir descer do carro ou voltar, um casal de velhos veio do interior do ambiente em direção a mim... Pararam no portão e ficaram olhando fixamente para o meu carro, tentando ver quem estava dentro e o que queria.

Tendo que decidir por ir ou ficar, uma força súbita e estranha finalmente me encorajou. Estacionei o carro, desci e segui em direção ao casal de anciãos.

Trêmulo, inseguro e de certa forma envergonhado, acheguei-me a eles e vi que logo abriram um largo sorriso diante de mim, me dizendo: “Estávamos esperando por você... Vamos entrar!”

Num misto de confuso e curioso, achei de inicio que tais palavras eram apenas um refrão costumeiro utilizado por eles para receber novos adeptos.

Em minha mente, esperava adentrar um ambiente onde a figura legendária de Lúcifer estivesse estampada nas paredes ou em forma de esculturas, diante de pessoas cultuando práticas estranhas, bizarras e condenáveis, mediante oferendas vivas e outras cenas cinematográficas.

Mas, ao mesmo tempo, em conflito íntimo, pensava: “como conciliar um ambiente satânico, com aquela recepção fraterna e aqueles olhos reluzentes dos velhinhos que me recepcionavam?”

Mas seja como for - concatenava - agora não dá mais pra desistir.

De repente, ao contrario de toda cena que plasmava em meus pensamentos, me deparei com um grupo de pessoas simples e sorridentes que me entreolhavam como se eu fosse um amigo de longos anos...

O casal me apresentava aos demais, envolvidos em euforia doce e suave, e cada qual vinha me abraçando fraternalmente, um por um, o que me deixava confuso e ao mesmo tempo desarmado dos condicionamentos ilusórios que carregava no âmago.

Puxado pelas mãos, os velhinhos sorridentes iam, prazeirosamente, mostrando-me o ambiente extremamente simples, onde pequena mesa lascada e tosca servia de altar.

Nas paredes disformes e descascadas observei quadros rotos com retratos de Allan Kardec e outros ligados ao Espiritismo, que até então eram para mim os chefes da oculta e anti-cristã seita.

Faltavam alguns minutos para começar a seção, e ao contrario do que esperava encontrar, não percebia qualquer misticismo, ritual, imagem, sons, pólvoras ou esculturas... Tudo era fraterno e aconchegante.

Me sentindo bem mais relaxado e envolvido por fluidos fraternos, mal acreditava no que estava acontecendo, e muito menos que depois de tantos anos experimentava um bem-estar, inconcebível até então, quando arrisquei em perguntar ao casal que me assessorava:

- “Por que vocês disseram, quando cheguei, que quem vocês esperavam havia chegado? “

Esperando a única resposta que concebia como racional, que seria a de que era o tratamento que davam aos visitantes, tive uma das maiores surpresas de toda minha vida, quando me disseram com a maior naturalidade possível:

- “Foi a sua vovó Fausta e sua Mãe Isabel que nos disseram sobre sua vinda”

Não acreditava naquilo que tinha ouvido!

Minha cabeça rodopiava em busca de compreensão e não conseguia concatenar os pensamentos.

Como - pensava comigo mesmo - condicionado ao fato de que mortos são mortos, ou estão no céu ou no inferno, minha vovozinha que havia partido há mais de vinte anos e minha mãe que morrera há mais de quinze pudessem ter falado com aqueles estranhos e distantes personagens?

Como entender que aqueles, até então estranhos para mim, numa cidade que nunca havia ido, pudessem saber o nome de minha avó materna e de minha mãe?...

Meus neurônios saltavam uns sobre os outros como num curto circuito incontrolável para equacionar a questão, mas se deparavam com os meus limitados horizontes mentais, voltando como bolas de borracha ao ponto de origem...

Nunca em toda minha existência havia sido pego de surpresa como naquele instante diante do fato que ocorreu.

A “ficha” teimava em não cair... Mas qual argumento poderia impedi-la?

De repente senti que veio abaixo como num desabamento, numa avalanche, toda uma velha cultura, errônea, primitiva e ultrapassada e cheia de preconceituosos mistérios... E como um furacão avassalador, levou abaixo toda aquela estrutura já carcomida de conceitos ilusórios, mas que ainda persistiam dentro de mim.

Não sei como não desmaiei diante daquela resposta do casal, que me foi dada com tanta naturalidade, envolta por sorrisos!

Aqueles velhinhos não tinham idéia da catástrofe que haviam provocado em minha alma, cheia de preconceitos, mentiras e utopias, pela simples e despretensiosa resposta, que agiu como uma bomba H, devassando toda uma região de ignorâncias sedimentadas...

Ainda atônito diante de repentina situação, anunciaram o início dos trabalhos.

Convidado a sentar nos bancos de tábuas, em meio a pequena platéia, que contava com cerca de trinta pessoas, entre velhos, moços e crianças, um senhor humilde deu inicio aos trabalhos convidando a todos para uma prece.

Logo em seguida, sempre com um sorriso no rosto e olhos reluzentes, leu uma passagem do Evangelho Segundo o Espiritismo, que para mim até então se tratava de um atentado à palavra de Deus...

Minha cabeça girava, envolvida num misto de esperança, de alegria, de espanto, enquanto energias suaves penetravam minha alma cansada e oprimida, me convencendo que aquele era um ambiente de amor.

Perfumes envolviam o recinto e penetravam minhas narinas, provocando esfuziante alegria que jamais houvera sentido.

Após as explanações, fui chamado e conduzido a receber o passe, dentro de um pequeno cubículo de lona rústica ao canto do salão.

Foi como tomasse um banho de esperança que lavou minha alma suja e perturbada, me fazendo desabrochar num repentino e incontrolável pranto, onde sentimentos contidos, tristezas e magoas pareciam estarem sendo dissolvidas e lavadas e depois tranportadas por um esgoto invisível.

Estava aturdido!

Eram muitas sensações e emoções para um só dia.

Não sabia o que pensar, só sabia que um profundo bem-estar e sentimento de esperanças invadiam o meu ser.

Ao término dos passes, as pessoas ainda permaneceram no ambiente, em torno de mim, envolvendo-me de sorrisos e eflúvios agradáveis de sincera de despretensiosa amizade.

Não sabia como agradecer o que havia me ocorrido. Na verdade, não sabia nem o que pensar.

Eram tantas as informações que giravam em minha mente...! Eram tantos os sentimentos que me envolviam que eu não falava coisa com coisa... Parecia um bobo-alegre diante de um radinho de pilha... Queria apenas ficar sentindo aquelas energias que percorriam meu ser.

Finalmente, me despedi de todos e tomei o carro de volta ao hotel.

Estava em quase estado de êxtase e assim fiquei por muitos dias.

Neste dia eu renasci para um novo mundo. Descortinei um horizonte de proporções infinitas e nunca mais abandonei os ensinamentos espíritas.

Não me tornei uma pessoa feliz, e nem tenho tal merecimento. Mas sou muito mais consciente, corajoso e hoje encaro a vida como ela é com todas as suas aflições, dificuldades e desafios, com uma esperança contundente e uma fé irremovível, porque posso compreender, conforme os ensinamentos de Allan Kardec, que a verdadeira fé é aquela que pode encarar a razão face a face em todos os tempos da humanidade.

Tião Luz
Enviado por Tião Luz em 12/10/2006
Reeditado em 12/11/2012
Código do texto: T262843
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2006. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.