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Eu tenho tido algumas alucinações que me chegam quase como um aviso celeste, igual àquele que as três crianças tiveram em Fátima. Meu psiquiatra me encheu a cabeça com um punhado de conversa e me receitou fumarato de quitiapina, 300 miligramas. Mas acho que ele está errado porque eu continuo vendo coisas que suponho não serem reais, no entanto, surgem com tanta clareza que às vezes acho que elas estão se tornando realidade. Eis como começou. Outro dia sai de casa para procurar emprego. Eu trabalhava como vendedor numa loja de eletrodoméstico até um mês atrás. Eu já ia continuar subindo a pé a avenida Rebouças quando tive a idéia de deixar um currículo no shopping Eldorado. Embrenhei-me num fluxo de gente e cruzei toda a passarela sobre os carros em movimento lá embaixo. Já era meio-dia. As pessoas se trombavam na entrada e saída do complexo. Senti um pouco de tontura talvez porque eu ainda não tivesse comido, e por um tempo, fiquei parado, olhando a silhueta da minha triste imagem refletida numa das paredes espelhadas do shopping. O meu rosto tinha definhado, sugado pelo peso da solidão. As pessoas transitando, e eu ali, sentia-me esquecido, ou me esquecendo, não sei. A vidraça negra estendia-se ao topo do prédio e me arrastava para dentro dela junto com o reflexo da vitalidade do centro urbano que movimentava-se em volta. Nessa atmosfera a cidade foi ficando em segundo plano e a minha atenção concentrou-se toda em minha imagem refletida, rompendo com a noção de espaço, tempo e realidade. Foi aí que essas alucinações começaram. Eu vi surgir do chão minguadas línguas de fogo dentro do reflexo que rapidamente transformaram-se em uma fogueira imensa amarelo-vermelho-vivo. Vi meu reflexo queimar contorcendo-se de dor, desenhando com a boca um gesto de grito surdo, entremeado com expressões horrendas que trazia-me a lembrança do grito de Eduard Munch, me olhava como se pedisse ajuda e queimava sem ser consumido pelo fogo como se tivesse que se recompor para que continuasse a queimar. Eu sabia que a expressão no rosto dele era a minha própria expressão e o desespero fez-me virar o rosto para o sentido contrário, mas, dessa direção, vi surgir uma multidão sonâmbula que sem tomar conhecimento de mim saltaram fornalha adentro onde iam queimar espontaneamente na fogueira de reflexos. Aqueles corpos queimando não refletiam mais meu rosto. E não sei o que aconteceu depois. Quando voltei a mim estava sozinho, suprimido pelo trânsito infernal à beira da avenida Rebouças. Contei isso a meu médico, na sociedade os médicos são os primeiros a descobrir novas doenças e a perceber possíveis epidemias, mas esse meu médico estava longe de ser um desses sábios. Ele me disse outro monte de baboseiras e me mandou embora. Saí do consultório e fui direto pra casa onde dormi por quinze horas. Eu moro sozinho. Até que procurei alguém pra morar comigo, mas comigo ninguém quis casar. As mulheres não toleram mais um homem pessimista. Eu moro na periferia da grande São Paulo onde os prédios avançam sobre a divisa das cidades vizinhas devorando as casas térreas que restam. Acordei já às nove horas do outro dia. E fui comprar pão. O céu estava cinzento, curvo por pesadas nuvens. Antes que eu pudesse sair de casa ouvi gritos de desespero do outro lado do muro. Tive medo. Me aproximei com cautela para olhar entre as grades do portão. Lá fora a cidade tal qual eu conhecia havia desaparecido. Em meio a vastidão de escombros de alvenaria, vidro, ferro retorcido e carcaças de carros, revirados sob espessas partículas de fuligem que cobriam o chão por camadas grossas de cinzas, tornando o ar quase irrespirável, surgia uma cidade de ouro reluzente isolada do mundo exterior por uma redoma de vidro. Os de dentro eram pessoas cobertas de gordura e grossas camadas de pele derretida, possuíam olhos melancólicos sombreados com um círculo de olheira e tez pálida como estátuas de mármore. Todos serviam-se de um banquete exposto dentro da redoma. Fartavam-se de comida mas não se saciavam. Andavam vagarosamente até a superfície da redoma olhando os de fora, que tomavam distância e chocavam-se contra o vidro, suspirando ais de remorso ou de dó. Os de fora eram pessoas horríveis empretrecidas pela fuligem. Os olhos vermelhos destacavam-se do conjunto de pele e osso. E as roupas rasgadas davam-lhes um ar selvagem como se não fossem mais pessoas. Eles gritavam como bárbaros atacando as legiões romanas e investiam contra a redoma não com ódio, mas despertados pela fome voraz que a visão daqueles corpanzis gordos suscitavam. Um pouco mais afastado do meu portão ouvi gritos novamente. Um homem caiu de repente no meio da rua, os outros, em surto de alegria, pularam em cima dele. Dilaceraram suas roupas. Puxaram-no por todos os lados. Alguns lhe cravaram os dentes e arrancavam trinchas de carne e pele, o sangue esguichou. Arrancaram os braços. As pernas. Enfiavam a mão em seu abdome e traziam as entranhas entre os dedos. Comeram seus olhos. Jogaram a cabeça no asfalto e comeram os caquinhos. Eu me encolhia cada vez mais atrás do muro com medo que eles me descobrissem. Não tive nem o ímpeto de voltar pra casa de tanto medo. Os de dentro sofriam com aquela cena mas não conseguiam parar de comer, do lado de fora eu não via nada que se pudesse comer a não ser gente. Supus que aquelas pessoas comeram tudo que pudesse ser comido, com uma fome sobrenatural, a vegetação, os cachorros, os gatos, os insetos, os ratos, provavelmente tudo já tivesse sido devorado. E só os mais fortes deles sobreviviam, os mais fracos eram devorados pelos mais fortes. Parecia que tínhamos voltado à idade da pedra, num tempo até mesmo anterior ao primeiro homem. E se tive a impressão correta posso afirmar que aqueles homens devoraram Deus. As turbas atacavam a cada hora em que alguém caía exasperadas por um pedaço de carne. Me faziam tremer. Tornaram a gritar, os dentro olharam em minha direção e suspiraram. Olhei e os de fora vinham em minha direção. Mas de repente toda a imagem se desvaneceu e lá estava novamente a velha cidade. As pessoas passavam apressadas para ir ao trabalho. O meu médico é um péssimo médico, entretanto eu também sou um péssimo paciente, porque sabendo disso podia muito bem trocá-lo. Em vez disso fico querendo eu mesmo descobrir a cura de minha doença. Mas a cada dia estou mais cansado. Vou definhando, emudecendo, quase não falo que tenho esse problema a ninguém, eu acho que a sociedade está à beira da esquizofrenia. Vasculho a Internet atrás de casos parecidos. Leio jornais esquadrinhando as linhas a procura de pessoas que tenham sido vistas vaticinando visões. Iguais a mim não, não achei ninguém, porém encontro muitas pessoas que agem como se estivessem doentes por uma variação da doença. como um cara que vive atualmente numa construção abandonada aqui no centro da cidade, com instintos e trejeitos de um homem paleolítico. Estive lá. Fui visitá-lo. O nome dele é Juarez, chamam-no de jurássico porque ele falava e age como um homem das cavernas. As alucinações? Ainda continuam, de repente assomam na minha frente. Cada vez mais reais.

Sérgio Caldeira
Enviado por Sérgio Caldeira em 21/12/2010
Código do texto: T2683942
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