Último Dia.

Ultimo dia de um ano qualquer, e amanhã, dia primeiro, será o dia de minha morte.

Com essas questões de vida e morte não se brinca, porém todas as estatísticas indicam que amanhã, primeiro de janeiro de um ano qualquer, será de fato o dia de minha morte.

Minha mulher fugiu quando soube do ocorrido, eis que lhe avisei somente hoje, dia 31 de dezembro, e ela, achando que estava ficando louco, ou que ia me matar ou sei lá o que, achou por bem fugir de casa. Talvez queria mesmo fugir há um bom tempo, e só usou o fato como pretexto para perpetrá-lo. Acontece que me esqueci mesmo, havia inclusive agendado.

Minha mulher, quando ao terminar de ouvir minhas palavras, deixou cair um copo d’água; chorou e saiu correndo, como a minoria das mulheres expostas.

Foi aí que decidi fazer um último churrasco, composto por três fatias de lingüiça mista apimentada e uma manta de coxão mole magro, além de um quarto de garrafa de um vinho Argentino, tinto seco (Select Pampas, Del Sur, Mendozati, Argetina) que meu amigo Dom por bem resolveu deixar aqui; seria meu presente de algum dia, o qual ele, o então presenteador, na mesma ocasião em que me deu, consumiu três quartos do litro.

Não sei se estou feliz e nem estou interessado nisso; não é o primeiro fim de ano sozinho e nem o mais triste; é apenas o último! Aliás, em fins de anos é difícil avaliar níveis de felicidade ou tristeza; parece que todos vivem o mesmo fastio, misto de um pouco de tudo; muitos ficam tristes e felizes ao mesmo tempo. É uma verdadeira miscelânea de sentimentos e sentimentalismos. Não sei se estarei vivo no próximo dia, mas sei que o dia está por vir, e isto já é o suficiente para viver o misto de tudo que é sentimento que se tenha notícia. Vivo assim agora; tentando passar em tela um pouco de tudo, um extrato do tomate da minha vida, de quem fui, o que fiz e o que deixei.

Bebo o vinho a goles curtos, pois está escasso. Perdi o apetite, a carne está bem passada na churrasqueira. Vai ficar lá ainda por bom tempo. Perdi o bonde da esperança, como diria Carlos Drummond de Andrade.

É o último dia do ano; o último também de minha vida, e isso não me significa nada!

Que fim de ano, indago-me, que virada, que porcaria de numeração histórica é essa, que nos dá a conta-gotas nossa contagem regressiva, torturante, rumo ao firmamento. Logo se cansa também de estar morto e de alguma forma se ressurge. Se não tiver fé, não custa ao menos ter esperança.

Há o reviver em todas as vertentes. A ressurreição cristã nada mais é que a transformação da larva: tudo surge, ressurge e se transmuda de alguma forma, seguindo os sábios ditames da Mãe Natura. Quem sou eu para ficar aqui supondo ou imaginando, ou, até, como alguns religiosos, até crendo piamente em seu modo de como lhe será a vida além-túmulo. Fazem-se aí milhares de conjeturas vãs, até curiosas, sobre o que pode ser a vida no além-túmulo. Não perco tempo com isso, vivo o bem agora, aqui!, a prática da racionalidade; o além há de vir inevitavelmente, e não adianta ficar pensando, desgastando e até matando por ele. Nada será da forma como não deve ser!

Hoje, no último dia do ano, tive novamente aquela sensação de morte no coração. A morte é um desmaio seguido de sono profundo e eterno, um sono pesado, abarrotado de sonhos, ou pesadelos, tudo conforme a vida pregressa do cidadão, conforme na Justiça.

Todos os meus amigos morreram de overdose; o último encontra-se internado num hospital psiquiátrico, amarrado numa cama, vendo-se injetar diariamente altas doses de LSD, por opção própria, obviamente, e a alto custo. Mas queria, ao modo de Timoth Leary, morrer assim. Retificando, não sei se o Timoth também morreu assim, mas a quem quis me referir era Aldous Huxley, “o porta”. Não tive heróis, nem fui e sempre desconfiei de ídolos.

As lingüiças acabaram; comi-as; a manta de coxão mole magra enegreceu-se feito um pedaço de carvão na churrasqueira; minha esperança, ah, minha esperança..., ainda mais de alguém que não passa de um personagem..., ah, minha esperança. Simplesmente existo na mente de alguém, mesmo que esse alguém seja apenas eu. Que deixar bem claro que tudo isso passa longe de qualquer lamúria, não estou aqui a me remoer por estar vivendo o último dia de minha vida. Jamais! Aqui habitam o dia-após-dia, se amanhã estarei aqui ou não, é outra história. Ainda bem que não paguei previdência privada, nem pública; nem seguro de vida. Segurar o que? Como naquela música da banda Zumbi Sou, que, por sinal, é um mistério:

“... Não sou nada! Não tenho ninguém! Sou nihil!”.

Evitei pagar o mínimo ao Estado Abusivo-coercitivo-enganador de Direito e aos banqueiros filhos-da-puta. Adorei aquele livrinho de bolso, ora, um clássico!, “A Desobediência Civil”, de Henry David Thoreau.

Adorei as carnes de fim de churrasco, quando ficavam meio torradas no fundo da churrasqueira. O único problema que vejo é que empretejava a bosta.

Esperei que quando de fato chegasse este momento alguma coisa fizesse com que tudo ficasse mais suave, como num sonho.

O que fiz? O curioso é que se fica avaliando a vida pregressa, pesando alguns erros, falhas, o que quer que seja. Por sorte ou sei lá o que, fui um bom homem, ao menos de acordo com os critérios que se pode ter do que seja um bom homem: não matei, não roubei, não comi a mulher do próximo e por aí vai...

Tive anos duros nos tempos idos. Não princípio não dei muita atenção às “mensagens” que foram se lançando ao meu caminho, até me esquecer completamente e me relembrar apenas no penúltimo dia! Trágico! Teria cometido loucuras, como comer prostitutas e cheirar cocaína, o que nunca fiz por receio justamente do binômio saúde-morte e da maldita sociedade maledicente, eis que existe a boa sociedade, a boa gente.

Pois como vinha dizendo, em um ano qualquer do passado fiz uma viagem a Quirinópolis, Goiás, e, num restaurante de posto de gasolina uma senhora sentou-se ao meu lado, se dizendo mãe-de-santo, e que eu morreria naquele ano, o qual é amanhã. Não dei bola pra velha, que me pediu dez reais e foi-se embora.

Dois anos depois, já em Poeirópolis, num outro posto de gasolina, só que àquela altura estava enchendo a cara, dois homens que passavam, pararam e, sem mais nem menos, foram se aproximando de minha pessoa. Fiquei preocupado porque estavam de terno e gravata, o que imaginei homens da lei, conseqüentemente problemas. Mas não, eles vieram para dizer que faziam parte de um culto religioso do norte e que eu estava fadado e esticar as canelas naquele ano qualquer do futuro. Aí sim, meu amigo, fiquei chocado!

São 16hs26min do dia anterior ao que disseram que eu morreria. Mas não disseram forma nem horário; pode ser às 23hs de amanhã, atropelado pelo último da lotação, esmagado com a cabeça na sarjeta; ou logo no alvorecer, vítima de assalto quando ia para o trabalho; ou até quando estivesse dormindo, infarto fulminante; não disseram forma nem horário, o que é até bom, senão seria sofrer demais de tensão.

Da vida o que mais fica é o convívio com a família; os convívios de trabalho e amizades, colegas, com raras exceções, foram tênues. A família sempre teve aquele olhar profundo entre si, sorrisos verdadeiros, arrepios de emoção, compaixão, empatia, que se fosse descrever todos os sentimentos da li emanados, não daria tempo porque morro a menos de 16hs. E o tempo urge!

Nem sei quanto tenho de dinheiro, só sei que meu saldo está positivo. Não devo ninguém. Nunca fui processado. Meu maior problema na vida se deu quando soube, na fatídica tarde de um dia qualquer, que estaria com câncer e que morreria em aproximadamente dois anos, o que, calculando com as duas datas anteriores, cairia justamente no ano.

A carne não assa mais; as formigas tomaram conta de uma região da pia...

Essa terceira coincidência, e científica, me tornou um homem despreocupado. Tinha então dois anos pela frente, dois loucos anos...

Bebi-os em goles generosos, letais, até o presente momento, quando me restou apenas o quarto de garrafa de vinho Argentino, tinto seco, deixado pelo amigo Dom.

Poderiam pensar que eu talvez devesse ter feito outra coisa além de beber, o que de fato fiz, não apenas me limitei a beber num canto sujo aguardando a morte. Que talvez devesse pensar na prática do bem religioso até o findar de meu prazo. Poderiam pensar o que quisessem; quando se depara com a morte, cada gato sabe escolher seu terreno.

Bebi-os e escrevi-os, numa intensidade insana, como alguém que estivesse acometido por algum feitiço o qual não pudesse nunca mais parar de escrever, tudo e a toda hora, enquanto restasse um último suspiro de vida. Foi assim até hoje e esse provavelmente será minha última manifestação escrita.

O curioso é que alguém me ligou por engano, numa voz rápida e efusiva, denotando muita euforia e felicidade perguntando: “Fefeu, aonde você vai passar?”. E eu ainda tive a paciência de responder: “não sou o Fefeu, mas ainda não sei aonde vou passar”.

Estou muito cansado, embriagado de muitas eras...

Acho que vou dormir...

Chaves Ribeiro, ainda sem saber, 31 de dezembro de 2.010.

Savok Onaitsirk, 31.12.10.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 31/12/2010
Reeditado em 02/01/2011
Código do texto: T2702195
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