Assim Bebeu Sua Última Cerveja.

Não tinha coisas na cabeça; não queria caminhar, muito menos conversar com “velhos” no bingo; queria beber, beber, beber uma cerveja para ver se o sono soava leve.

Não tinha muitos problemas, a não ser a hora pra tudo: hora pra jantar, pra acordar, pra almoçar... Hora pra viver e pra morrer...

Não tinha mais planos; nem seus, nem dos outros, que na verdade ou na mentira, segundo Sartre, eram os problemas! Não tinha mais problemas... Não tinha mais nada! Não confiava em mais ninguém com menos de setenta anos! A vida lhe estreitara os limites, e estava enfastiado de tudo!

Bebeu a primeira cerveja com voracidade, como se o mundo fosse acabar, ou como se estivesse atrasado para o primeiro encontro, ou para o cinema, ou para sua formatura; como se estivesse atrasado para seu último encontro com uma senhora à qual fora apaixonado na juventude, porém ambos agora estão velhos, mas querendo se apaixonar. Assim bebeu a primeira cerveja...

Bebeu como se estivesse atrasado para alguma coisa que devia, no decorrer de sua vida, fazer, e que agora, no entanto, sequer se lembraria dessa “coisa”, que naquele momento lhe tirou o sono, lhe causou dor de cabeça... Não tinha mais certeza de nada! Ansiava pela “verdade”.

E tantas e tantas coisas banais, no decorrer de sua vida, lhe tiraram o sono... Tantos porres idiotas, tantas náuseas... O medo de não ter dinheiro para pagar contas, pendengas financeiras e problemas alheios, questões de ordem pessoal, se devia ou não cometer mais erros que acertos, e quais seriam suas proporções; o medo de não ter prazeres o suficiente na vida, enquanto outros porventura poderiam estar aproveitando mais do que você. Mas tanta besteira que quando acordava lúcido numa manhã de sol e se via defronte tamanha baboseira, quase vomitava ao escovar a língua diante o espelho.

Na segunda cerveja os problemas se amenizavam suavemente, ficando um tanto quanto superficiais; e se tornava forte, sapiente, sabe-se lá o que mais...

Não tinha mais tanta coragem como outrora. Quando o corpo pede a mente não tem como controlar. A idade vinha inexoravelmente, dia-após-dia..., martelando... As contas aumentavam também com a idade, equitativamente, com algumas coisas que àquela altura lhe eram imprescindíveis, tais como algum ansiolítico, aspirinas e outros comprimidos para controlar a pressão arterial, gastos os quais lhe deixava ressabiado, meio que com vergonha do farmacêutico; coisas de velho que não quer ficar velho.

E o tempo vinha... Tanto é que não comemorava mais festas de fim de ano. Achava aquilo uma grande idiotice, na altura das conseqüências.

Amigos se escasseavam, assim como cabelos, neurônios e dentes, o que também lhe escasseavam os sorrisos, que, de tempos em tempos, se transmudavam para algumas lágrimas solitárias no fundo do quintal de sua casa.

As punhetas, quantas batidas e quantas sonhadas, quantas saudades. Batera tantas para tantas mulheres imaginárias que se pudesse computá-las provavelmente encheriam duas ou mais passarelas de samba do Rio de Janeiro. E eram mulheres feias, que só ele e seu pênis achavam excitantes. Sempre tivera uma queda não pelas feias, que pode parecer escroto, mas pelas exóticas, aqueles amores de mulheres únicas em sua mente. Comera algumas. Satisfizera bem a libido. Em pouco tempo, mas o que não é por pouco tempo na vida?

Não está morrendo agora, para deixar claro, não morrerá nunca! Seu corpo deixará um legado e sua alma transcenderá “ad eternum”... Ele sabe disso, mas enquanto dorme sonha com a infância e suas vivências, fossem glorias, deleites, como derrotas, que agora não significavam mais nada. Se soubesse teria sofrido mais derrotas, mas teria tentado mais, se conformado mais, por mais que esteja confortado, agora, em sua cama, acomodado, sonhando com seu corpo viril e sua luta em dia de sol para conseguir chegar em casa e realizar algo que lhe desse prazer. Eram dias de sóis, chuvas ou os dois ao mesmo tempo, quanto prazer, quanto tormento.

Os relâmpagos que o acordara de madrugada, em estrondo, a cabeça quente, o dia por vir, praguejava, sem saber, sem sorrir, que aquilo, aquele evento da natureza era tão ou mais importante do que qualquer problema que porventura a ele viesse acometer. E ele com isso nem se tocava, simplesmente praguejava...

E em sonhos líricos esses relâmpagos hoje lhe vinham à mente como bênção de uma natureza sábia e benevolente; justamente hoje, quando é mais mente do que corpo, e que não pode mais sair por aí corrente feito louco, fingindo esportista, sorridente com os dentes amarelos de tanto fumar aqueles cigarros malfazejos.

Enquanto sonhava com sua juventude tinha a esperança de que sonhara que estava velho e que agora, sonhando, estava de fato acordado em realidade, ainda jovem. Mas a vida era um sonho a ser sonhado ou um pesadelo a ser vivido? Àquela altura, como dito durante toda a sua vida, nada mais faria sentido. As brigas, discussões e correrias por grana, toda aquela patifaria, aquela não passava de um lapso de pensamento no deserto de suas idéias.

Os sonhos e intemperanças várias estavam todos extirpados dentro seu ser. Agora eram noturnos, oníricos, vagos, de mundos distantes, não mais aquelas ganâncias do dia-cão, aquele torpor de um ser carnal, lutando por rodear-se de putrefarias e honrarias vãs. Era um homem, no dito mais “santo” da palavra.

Abriu a terceira garrafa de cerveja. Agora via-se rejuvenescido, cristalino, inumano, animalizado, mas mais decrépito do que aquela “hera” selvagem, resgatada fossilizada por arqueólogos. Sabia disso e de mil outras coisas, mas sabia também do poder de uma terceira cerveja aberta e, se possível, ingerida... E bebia...

Não havia mais como purificar-se, nem fazer novo começo, nem fim. Sabia que todos seus “cartuchos” foram queimados. Morreria de taquicardia caso quisesse contrariar a ordem natural das coisas. E a vida, agora, era uma ordem, uma batalha a ser travada a cada dia; um dia a mais seria a glória, e isso seria, após, seu septuagésimo aniversário, uma meta a ser seguida.

O rock’n’roll que embalara sua juventude voltara das tumbas do silêncio com a abertura da quarta garrafa de cerveja. A coisa perdera o controle. Era agora um velho dançando na sacada do décimo primeiro andar de um apartamento na Mooca. Era um velho, mas tinha glóbulos vermelhos rolando em suas veias, e dançava..., e rolava..., e rock’n’roll!

Era apenas mais um velho diante os mais de trinta milhões da Nação, segundo o censo daquele ano, mas o rock ululava em suas artérias, rock e cerveja, como há muitos anos que mais pareciam que se foram ontem. E ululava... “Long live rock’n’roll!

Lembrava doutras eras, “do cosmopolismo das moneras”, de Augusto dos Anjos, das “discussões dentro de edifícios”, de Carlos Drummond de Andrade, da “escavação no pulmão esquerdo”, de Manuel Bandeira, e ria, e queria a rua, e bebia, e ululava, ululava...

Lá fora não havia sol, era princípio de janeiro, e só trovoadas... Trovoadas dentro da solidão de um velho que ouvia rock e se embriagava...

Lembrando-se das anfetaminas, lanças-perfumes e ervas-doces, tantas meninas em seus dezessete anos, a faculdade, a liberdade, a primeira liberdade, quanta coisa louca... Creedence Clearwater Revival... Led Zeppelin... Mutantes, puta que pariu... E ululava..., ululava... Aumentou o volume do som... ululando...

Era quase vinte e três e cinqüenta e nove de sua vida...

Na quinta cerveja um soco seco bateu-lhe no peito, fechando-lhe garganta, peito, falta de ar...; caiu ao chão em novos sonhos se formando, esvoaçantes em névoas... Lembrara vagamente até de uma de suas fotografias antigas, manipulada magistralmente por Magister Dixit, amigo de sempre..., mestre da publicidade, enquanto ululava... ululava..., e todas suas meninas bailavam diante si, num sonho anímico, nunca antes vivenciado... Já não tinha mais nada a perder...

Viveu o melhor de seu mundo... Raios, trovoadas, chuvas, sóis intermináveis, cervejas e rock’n’roll o embalaram, melhor combustível...

Que crianças, velhos decrépitos nem ninguém o seguisse! Que construíssem suas melhores moradas, seus melhores trajetos, seus ideais e melhores sonhos “oníricos”!

Ele não tinha a “razão”!

Vê se dá conta da carga que o mundo lhe empregou, e pára de choramingar à toa!

“Stairway to heaven”...

Obs.: Texto dedicado ao “velho” cujo melhor “desfibrilador” era cerveja goela abaixo e rock’n’roll na veia, no bom sentido da expressão...

Savok Onaitsirk, 06.01.11.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 07/01/2011
Reeditado em 24/01/2014
Código do texto: T2714694
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