Infausto Ferreira e o Reino dos Céus.

Por sorte ou sei lá o que, no supermercado onde Infausto Ferreira fora comprar maminha não vendia cordas nem venenos de ratos! Há muito ele queria provar do além; também as facas daquele porco mercado não estavam com o corte afiado, o que poderia acontecer como aconteceu com aquele pobre repórter seqüestrado pelo Talibã em 2004, que teve a cabeça arrancada com uma faca mal-afiada, de cozinha, numa longa e trágica história.

Sua vida aparentemente era o sonho de todo homem de meia idade, com mulher, casa, carro, cão, dinheiro na carteira e TV por assinatura; mas não, na verdade era uma vida de cão. Queria meter a boca no escapamento de um opala 74, todo fodido, queimando óleo, e que acelerassem.

Misteriosamente sua mãe dera esse nome a ele pela sorte conseguida na loteria esportiva de Lima, Peru, onde morava e nunca saira. Em Lima tinha opala sim, aos brasileiros que pensam que não. Nem se arrepende disso; se diz um sobrevivente dos terremotos que assolaram seu país na ultima década. Nadou quatro quilômetros para salvar Suzinha, sua irmã vadia. Vadia no bom sentido, porque homem quando é “pegador”, é garanhão; mulher é tratada como vadia. Há aí um disparate com relação à igualdade tão defendida entre todos os seres humanos, sejam pretos, brancos, azuis, mulheres, homossexuais, doentes, sadios, crianças, velhos, fortes, fracos, e até alguns cães, com raras exceções, merecem o mesmo privilégio! Sophia era uma delas, o grande amor da vida de Infausto Ferreira!

Nunca soube o que queria da vida. Não queria paz, nem tranqüilidade, queria os “infernos” para produzir seus pensamentos, que, cá entre nós, foram mais um dos motivos para que desse no que deu.

Sophia veio ao acaso, estranhamente numa tarde de quinta feira. Era novembro. Apareceu trazida por sua mulher, bem pequena. Infausto dormia. Dormira o dia todo, com uma ressaca maldita, de muitas eras. Mas quando seus olhos cruzaram com os de Sophia, caiu da cama, abraçando-a como se abraça algo sacrossanto. Sua mulher se assustou.

Sophia era uma cadelinha da raça yorkshire, diferente de todas as yorkshires conhecidas. Era selvagem, e todos perguntavam se era macho. Veio com uma espécie de tala nas orelhas, para mantê-las eretas depois de um certo tempo. Logo Infausto arrancara e deixara suas orelhas como a natureza queria. Não estava presennte quando cortaram seu rabo, mas por certo não permitiria, nem por cima de seu cadáver.

Engraçado, pensava Infausto: quando se está velho e comovido demais para pensar nas perdas de entes queridos que foram passando diante seus olhos, tudo parece banal. Duas garrafas de vinho se transformam quase que em dois picolés da infância; uma superficial e tenra alegria... Depois de um certo tempo nada mais alegraria como nos primórdios do experimentalismo; desde a primeira chupeta até a primeira buceta, o primeiro televisor visto dentro de sua casa (era ainda bem pequeno), a primeira motocicleta voadora, a primeira (e última) viagem de ácido lisérgico, o primeiro cd em formato cd, o primeiro toca-cd, puta merda!, quanto som em alto e bom som, e som do tipo Pink Floyd (o primeiro cd), The Doors, Raul Seixas, Legião Urbana, Cazuza, Beatles, Nirvana, Chico Buarque e por aí vai...

Sua paixão por Sophia ultrapassou fronteiras, a ponto de discuti-la judicialmente em sala de audiência, em seu divórcio.

Depois disso, quando perdeu a “guarda” de Sophia, sua vida virou um caco. Sozinho num fundo de casa, arrebentara com tudo em pouco menos de dois anos; dois longos anos para ele, consistentes em experimentalismos de todos os tipos de “refrigerantes”, em dias ou noites chuvosas, lá ia Infausto em sua inglória trajetória, que logo teve uma guinada circunstancial.

Tal guinada, por um lapso de segundo que seja, transformou seu restante de vida. Soube que tudo aquilo fora de fato válido, aquele amor, aquela compaixão para com os animais, e principalmente Sophia.

Logo que Infausto morreu, passados poucos meses, uma médium me procurou, trazendo uma mensagem urgente do além:

“Meus irmãos, para os que ainda sofrem por minha vida passada, ultrajante, peço, pelo amor de Cristo, que abandonem pensamentos negativos e pecaminosos, pois o reino dos céus é animal!”.

Savok Onaitsirk, 07.01.11.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 08/01/2011
Reeditado em 10/01/2011
Código do texto: T2716488
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