Vestígios de Conflito

Havia um conflito interno, um conflito partidário, político, e nele estava eu, parecia fazer parte do partido contrário, algo como uma guerrilha. Via-me sobre um prédio em ruínas, armada de metralhadora em punho e vestia um fardamento verde-escuro.

Era fim de tarde, o sol já estava bocejando, avisando-nos que o dia terminava. Havia outras pessoas que também vestiam o mesmo tipo de fardamento, alguns pareciam fora de controle, metralhavam sem parar para o lado oposto ao nosso, onde víamos outro prédio. Não sabiam o que faziam, se acertavam alguém, aparentemente não havia nada vivo do outro lado. De repente alguém gritou desesperado para que saíssemos dali. Fui empurrada para uma corda e agarrei-me a ela. Comecei a descer rapidamente pela corda, vi janelas destruídas e portas semi-abertas a cada andar do prédio que descia. Então, talvez precipitadamente, pulei para uma das janelas e entrei, largando a corda e penetrando silenciosamente naquela escuridão.Parecia um quarto, esperei um pouco para que meus olhos se acostumassem a escuridão do lugar, depois tentei movimentar-me lentamente para não esbarrar em nada.Havia um móvel a direita da janela que parecia um roupeiro, abri-o cuidadosamente e fui imediatamente empurrada por um pequeno vulto que saiu correndo enlouquecidamente. Assustada, ainda pedi que esperasse e vi que o vulto retornou mais calmo. Era um menino moreno de aproximadamente doze anos de idade, vestia uma camiseta escura e uma bermuda clara, não consegui perceber as cores nem a nitidez de seu rosto, pois a penumbra do lugar não permitia.Voltou, mas não para conversar comigo, voltou para pegar um papel que caíra de sua mão. Fui mais rápida e apanhei a folha de caderno amarrotada em forma de buchinha no chão, abri-a, não havia nada de comprometedor, apenas inúmeros “jogos da velha” escritos com caneta preta e riscados. O garoto ansioso pediu-me o papel sem nenhuma palavra, apenas um gesto com a mão direita estendida em minha direção. Entreguei a folha e antes de qualquer palavra, o garoto sumiu correndo pela escuridão da casa.Fui seguindo pela mesma porta, a cada passo sentia-me cada vez mais amedrontada pela escuridão que aumentava, pois a única luz vinha da janela do quarto.Andei lentamente, a metralhadora a tiracolo. Via-me agora num corredor e nele algumas portas que davam para quartos ou salas. Entrei num deles, era uma sala, havia uma outra janela e dela vinha ainda uma luz suave de início de noite.O lugar estava sujo, pedaços de móveis e vidros no chão, uma pequena mesa redonda ao centro, sobre ela uma toalha, um castiçal com duas velas acesas e um vaso de flores novas, próximo à janela, um armário escuro. Ouvi passos, corri para trás do armário e fiquei espiando por entre as frestas do móvel. Eram duas mulheres que se aproximavam, uma delas trazia uma bandeja com minúsculos sanduíches abertos, pastéis, uma tigela de patê e duas xícaras de chá. A outra se vestia com apuro, como se fosse a alguma festa, um vestido azul claro de seda e um chapéu da mesma cor.Essa última sentou-se à mesa e aguardou que a outra a servisse de chá e saísse.Quando se viu sozinha começou a falar como se soubesse que eu estava ali.Disse que era melhor alimentar-me, pois depois tinha graves problemas a enfrentar.Disse-me também que sabia que eu estava ali, que era o meu contato dentro da casa e que viu quando o pessoal da resistência começou a evacuar o prédio.Nesse momento saí de trás do armário e sentei-me à mesa, serviu-me de chá. Eu estava faminta, e devorei rapidamente alguns pastéis e sanduíches sem antes esquecer de lambuzá-los de patê.

Depois de saciar a minha fome, esperei que minha anfitriã trocasse o lindo vestido pela farda que estava sobre uma poltrona vermelha ao lado da mesa.Tirou o chapéu e prendeu o cabelo como o meu para colocar o quepe, vestida assim mais parecia um garoto do que a mulher de trinta anos que encontrei à mesa.Em seguida, mostrou-me uma pasta verde com alguns mapas que pareciam ser do território inimigo. Saímos pela mesma porta que entrei e seguimos pelo corredor agora completamente escuro. A noite chegara enquanto conversávamos durante o chá e agora parecia quase impossível movimentarmo-nos sem esbarrarmos nos objetos que estavam no caminho. Seguimos até uma janela no fim do corredor, lá havia uma corda que estava pronta para deixar-nos fora do prédio e duas pequenas lanternas. Olhei pela janela, estávamos aproximadamente a uns oito andares do chão, liguei uma das lanternas e iluminei para baixo, aparentemente nada havia lá embaixo que pudesse nos amedrontar, apenas a descida parecia difícil. A essa altura estávamos mudas, talvez pelo medo do que nos esperava lá embaixo.Comecei a descer primeiro, fui descendo lentamente agarrada à corda, fazia muita força, num dos pulsos amarrara a lanterna para que pudesse visualizar o caminho íngreme da descida. Quando me vi a salvo, com o pé no chão, direcionei a luminosidade da lanterna até a janela de onde partira a fim de avisar a minha camarada de era sua vez de descer. Mas para minha surpresa nada vi além de completa escuridão. Senti-me muito mal, tive uma vertigem.Dúvidas apossaram-me, será que era emboscada? Se o fosse então o que eu comera poderia ser veneno.Não fiquei nem mais um minuto ali, corri até o arbusto próximo e escondi-me, sentei-me no chão para não cair, estava assustadíssima. Talvez os inimigos a tinham encontrado antes que pudesse descer?Sucessivas perguntas sem respostas apoderavam-se de meu cérebro, meu coração pulava, eu suava e tremia. Nesse momento ouvi algo que pareciam trovões, eram rajadas de metralhadoras, vi vultos correndo na escuridão, o céu se iluminava em pontos isolados pelos fogos de artilharia, levantei-me, ajustei a metralhadora em minhas mãos e corri em disparada. Nos segundos que se passaram nada percebi, lembro que acordei em meu quarto com o telefone tocando repetidas vezes.

Evanise Bossle
Enviado por Evanise Bossle em 30/01/2011
Código do texto: T2761483
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