Você não vê aquele menino?

Está vendo aquele menino? Aquele sentado no meio-fio a olhar para o chão perdido num cenário cinzento aquecido pelo calor do asfalto. Aquele que usa farrapos desenhados pelo tempo, guardando como lembrança as marcas das poeiras e das chuvas de onde passa sem marquise. Aquele com um tênis sem nome, remodelado pelos anos de uso, deixando aparecer seu magro dedão, desprotegido sem meias, protegido pela sorte que foge de suas mãos. Aquele mesmo, que esconde a fome em seus olhos e revela a miséria em sua tez encardida de medo. Aquele que nunca ouviu a palavra sonho, que sonho sem saber o que é sonhar; que tem um grande poder de imaginar, mas não sabe nem o que é narrar. Aquele rapaz que chuta uma pedra e a vê como uma bola fazendo um gol, enquanto a torcida vibra e grita o seu nome; até que a pedra acerta um vidro e seu estalido desperta o menino, sumindo a trave, sumindo a torcida, sumindo o nome. Aquele que não sabe se tem mãe, se já teve nome, se já teve manta, se já teve colo, se já teve cafuné, se tem irmãos. Aquele cabisbaixo, de mente e barriga vazia, que luta contra as largas portas que encontra no caminho, que já pensa em aceitar uma delas como seu destino. Aquele de olhos fundos, sem lágrimas para regar seu pranto, sem máscaras para refugiar-se num instante, sem amigo para dar-lhe um abraço de vez em quando. Aquele menino que só foi envolvido por braços numa briga por um carrinho de papelão, que não reconhece a sua capacidade de enlaçar e ser enlaçado. Está vendo aquele menino? Aquele que te cansa imaginar, que está distante do teu olhar e mesmo o apontando, a tua visão não o consegue alcançar. Aquele mesmo menino, o qual o máximo que tu fizeste foi o ignorar quando pela calçada tu te puseste a cruzar e nem os seus olhos pueris tu quiseste atentar. Aquele menino que te observou com a esperança de que tu o reconhecesses depois de tanto tempo, achando, quiçá, que tu fosses o (a) criador (a) dele, enquanto tuas pernas apressaram-se fugindo de uma suspeita ameaça. Aquele menino ainda está sentado na mesma calçada, com o ar cinza e as cores mortas, que os teus olhos não alcançam pela distância das realidades, não poderia nunca ser você... Mas aquele menino que era sem nome e sem dono, sou eu, o mesmo que um dia, de alguma forma, foi abandonado por ti...

Gabriela Ferper
Enviado por Gabriela Ferper em 29/10/2006
Reeditado em 24/08/2007
Código do texto: T276459