UMA VEZ...

... Eu ia caminhando pela rua e tropecei em algo, dei mais um chutinho para tentar identificar o que era. Não consegui. Abaixei para pegar aquele objeto estranho. De repente... Plec, ou será Crac, a coluna travou. Nem pra cima nem pra baixo, tinha que ficar naquela posição, no meio da rua. Mal dava para olhar quem vinha ou ia, pois estava praticamente em forma de L virado.
Alguém para e pergunta: - O senhor está com algum problema?
A voz não sai. Resolvo sinalizar com o braço, percebo que ele não quer me obedecer direito.

O sujeito abaixa, olha pra mim e diz: - É alguma pegadinha? E vai embora.

Está começando a pingar, chover mais forte, muito mais forte, ninguém na rua.
Um carro passa numa poça de água suja e me dá um banho. O caldo sujo escorre pela testa e um gosto amargo chega aos lábios.

Começa parar a chuva, um cachorro se aproxima, esfrega as patas para trás, levanta uma pata e urina na minha perna.

A rua continua deserta, ao menos não vejo ninguém no chão.

Sinto algo na bunda. Alguém enfia a mão no meu bolso e tira a carteira. Consigo ver de rabo de olho que o sujeito esta andando e a abrindo minha carteira.

Começo a ficar nervoso, muito nervoso, sinto cólicas fortes. Pressinto que algo terrível vai acontecer. O pior acontece, não consigo me segurar. Sinto algo escorrer pela perna.

Passa alguns minutos e um cheiro horrível se instala ao meu redor.
Estou suando e pingando. Ouço uns zumbidos, moscas estão rodeando e pousam em meu rosto, pousam no chão onde se encontra uma mistura de água de chuva, lama, urina de cão e dejetos humanos líquidos.

Acho que não há mais nada pior pra acontecer. Fico mais uma hora parado e o cheiro e as moscas tomando conta de tudo.

Ouço passadas rápidas. Vejo dois vultos correndo, um grita: - Pega ladrão!
Subitamente um desses vultos esbarra em mim. Caio como uma estátua em posição inclinada. Meu chapéu amortece a batida e fico com um V invertido.
Por incrível que pareça não tombei nem para a direita nem para a esquerda.

Já passou mais uma hora, estou imóvel. Sinto vontade de urinar. Tento segurar, mas não consigo. Devido a posição parte da urina desce pelas pernas e parte vem em direção à barrida, peito, pescoço e queixo. Sinto o cheiro e o calor da urina escorrendo até o queixo e pingando no chão.

Acho que mais nada de ruim pode acontecer.

Passa mais uma hora e meia, sei disso porque o relógio pendurado na cintura está com o mostrador virado de forma que consigo ver as horas.
Já está escurecendo, se aproxima um carro com uma luz vermelha piscando, creio que seja a polícia ou uma ambulância, mas não para.
Acho que nem me viu porque estou de roupa escura e há um poste e uma lixeira perto.

Estou com fome creio que seja mais de dez horas da noite. Sinto a cabeça quente, acho que esta chegando muito sangue nela, devido estar pra baixo. Consigo até ouvir o sangue pulsar na face fedida.

Outro cachorro se aproxima. Não, não é um cachorro é uma cadela no cio. Resolvem parar bem na minha frente e um punhado de cachorros se aproximam. Brigam latem e o mais valente sobe na cachorra. Ficam por 15 minutos fazendo sexo explicito na minha frente.
Esbarram em mim, perco o equilíbrio e tombo de lado. Assustado o cachorro machão morde meu pé. Não dói muito porque estou de sapato.

Agora de lado como um V tombado já consigo ver mais longe. Vejo um par de farol se aproximar. Penso: - Acho que agora podem me ver.
O carro passa e não me vê ou finge que não.
Aproxima-se apenas um farol, deve ser uma moto ou um carro com farol queimado. Pelo barulho é moto. Está se aproximando, está bem perto, acho que vai parar. Subitamente escorrega é passa em cima de mim.

Acho que estou vivo, só que agora estou olhando pra cima, vejo as estrelas. Minha cabeça torceu um pouco e estou em forma de V tombado, mas com uma ponta torta, que é a cabeça.
O sujeito olha pra trás, levanta a moto e vai embora, acho que tem medo de chegar perto.

Começa a chover de novo, e bem forte. Agora posso tomar água dá chuva. Nossa, nunca imaginei que poderia amar tanto a chuva.
O gosto inicial é uma mistura de suor, urina e água. Tento cuspir, mas sobe e volta a cair na testa.
Agora só sinto o gosto da água da chuva. Chove muito, tenho que ficar soprando pelo nariz pra água não entrar por ali.
Estou muito desconfortável e dói meu pescoço. Continuo imóvel, consigo mexer o nariz e a boca, mas a voz ainda não sai.
Diminui a chuva. Ouço um barulho de caminhão, pela visão periférica vejo que é um caminhão de lixo. Os lixeiros correm na frente pegando lixo.
O caminhão está mais perto, mais perto. Vejo um pneu enorme e preto.

Não estou vendo mais nada, nem sentindo nada. Um silêncio absoluto, nem mesmo os sons barulhentos do silêncio eu ouço.
- Será que dormi?

Sinto que estou flutuando e navegando. Primeiro lentamente, logo depois como jato em alta velocidade. Tenho a sensação que sou algo controlado a distancia, como um brinquedo com controle remoto.

Repentinamente paro, sinto-me como que suspenso no ar. Não, não é isso, sinto algo mole, acho que estou boiando na água.
A água se foi, não me sinto mais suspenso.

- Ai que apertado ! Alguém está me puxando.

Renasci.



Claudio Cortez Francisco
Enviado por Claudio Cortez Francisco em 09/02/2011
Reeditado em 12/02/2011
Código do texto: T2781654
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