Minha Nossa Senhora, Aureliano!

Há situações em que o sujeito não diz mais: meu Deus!, porque Deus restou inútil; diz: minha Nossa Senhora!, cruz credo!, porque se chegou a estágio limite.

Aureliano torrou sua última chance no jogo do bicho. Queimou seus arquivos mortos e engoliu as cinzas. Músicas alegres lhe eram deprimentes; livros de auto-ajuda lhe serviam apenas como papel higiênico e anfetaminas lhe eram balinhas de criança. Seu cérebro estava mais frito que um ovo jogado no asfalto tórrido do rio quarenta graus.

O histórico dizia que, há aproximadamente um ano, Aureliano deixara de consultar o dicionário Aurélio. Resolvera a partir de então ser um otário. Era o que dizia o histórico!

A esperança, outrora florida, lírica, rija e companheira de dias em estradas ensolaradas, enegreceu-se, falida; os médicos, cansados e achincalhados pelo maldito, tiraram as luvas e o pobre padre, sólido, aconselhou extrema-unção... Aureliano já era!, na linguagem dos jovens milicianos. Tinha somente alguns dias de vida, ou meses, oxalá um ano, sendo impossível precisar ao certo. Oxalá com azeite de dendê!

Fumou mil e setecentos cigarros em parcos dias restantes. Havia parado de fumar, pobre-diabo, com medo do câncer; chorou e bebeu as lágrimas com vodka barata.

Numa tarde, desafiando o nojo e vendo a culinária tailandesa na TV, resolveu fritar e comer uma família inteira de baratas que o atazanava há meses. Economizaria tempo e inseticidas. Dito e feito.

Aureliano, sem plano e sem pano para forrar a mesa, tenso, sem “lenço nem documento, deixou de ser humano. Abandonou o tormento.

This is the end, my friend!

Morto, jazendo no IML para procedimentos derradeiros, contrariando Deus e os sistemas médicos-legais, Aureliano reergueu-se num sobressalto da maca, acarretando (aí sim) a morte súbita de um auxiliar de enfermagem, de susto.

Minha Nossa Senhora, absurdo!!!, balbuciou, trêmulo, em seqüência, o paramédico, dando-lhe passagem...

Sua carniça ficaria aos ventos por meses, causando o regurgito de quem com ela se deparasse. Estava morto! Mortinho da silva! Um morto-vivo!

E assim, coberto por uma espécie de lençol branco ao invés de terras e relvas, sem ser capturado por seguranças e enfermeiros, que se horrorizavam e faziam o sinal da cruz milhares de vezes seguidas e em velocidade estonteante, Aureliano atravessou o portal dos mortos e rumou mais uma vez para o jogo da vida...

Como um soco no rosto em que sequer se vê o contendor, desapareceu..., sem dor, sem amor...

Soube-se depois que montou uma banda de rock, a ZUMBI SOUL; não fez sucesso e virou uma espécie de ermitão, vivendo como sempre sonhara numa floresta ciliar do norte da Tailândia, se alimentando exclusivamente de ervas, baratas, gafanhotos e demais insetos, não se sabendo nada mais a respeito de sua vida ou morte...

This is the end, my friend!

Savok Onaitsirk, 08.09.10

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 07/04/2011
Código do texto: T2894372
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