O CORPO SECO

(A todas aquelas almas que, forçadas pelo progresso, perderam seus berços que imaginaram eternos.)

          Para a maioria da população, a ruidosa chegada de enormes máquinas amarelas, caminhões gigantescos e um contingente de homens em macacões azuis, foi um alvoroço que veio quebrar a monotonia da pacata cidadezinha no extremo Noroeste do Estado de São Paulo. Parecera uma invasão, como aquelas que se viam nos filmes mostrados no Cine Centro sobre a Segunda Guerra Mundial. Começaram por escarafunchar a terra vermelha com aquelas vorazes lagartas de aço lá para os lados do Cruzeiro, ao mesmo tempo em que eram erguidos rústicos barracões de madeira para escritórios, oficinas e depósitos. Poucos sabiam, até então, que a terraplenagem e toda aquela movimentação se devia ao fato de que a Companhia Paulista de Estradas de Ferro havia iniciado a complementação de um projeto de construção que estenderia os trilhos de Adamantina até Panorama, às margens do Rio Paraná. Não se passara metade de uma hora desde que a primeira máquina enchera o ar com seu ronco possante e sua fumaça preta de óleo diesel e já a novidade havia chegado à praça da estação rodoviária através de um chofer de táxi que transportara um engenheiro do único hotel da cidade até o canteiro de obras. É claro que, do ponto central de táxis, a notícia logo ganhou fôlego e foi exaustivamente comentada nas padarias junto com o pão e o leite, depois se espalhou pelas lojas que abriam às oito, e entre os frequentadores dos botecos no meio de seus carteados, e nas beneficiadoras de grãos no vai-e-vem das peneiras, e junto com o bater de carimbos nas repartições públicas e, enfim, pelas três avenidas principais e por todas e poucas ruas transversais da cidadezinha, antes que a densa poeira levantada pelos imensos pneus das escavadeiras assentasse sobre os cafezais e pastos circunvizinhos.

          Ali seria construída a nova parada de trens: a Estação Ferroviária de Flórida Paulista, repetiam, orgulhosos, os habitantes do lugar até então invejosos dos Adamantinenses por serem eles, os donos do ponto final do trem. O limite geográfico do progresso era aonde chegava a estrada de ferro, sabiam todos. O que se perguntavam entre si e intrigava os curiosos era por onde passariam os trilhos vindos de Adamantina. Os teodolitos, como pequenos monstros da Guerra dos Mundos, apontavam diretamente para o único cemitério da cidade. O rumo dos trilhos se confirmou. Eles cortariam o campo santo bem no meio. Logo se ficou sabendo que uma nova área já havia sido reservada para o descanso dos mortos. O fato bem serviu para inflamar os discursos dos dois candidatos que concorriam à prefeitura do município naquele ano, um deles posicionando-se radicalmente contra tal heresia e com o apoio irrestrito do padre da paróquia local e suas fiéis beatas. O outro, oportunamente mais progressista e, financiado pelo latifundiário Coronel Isidoro de Oliveira, defendia incansavelmente a desapropriação do terreno, lembrando aos eleitores da cidade que a extensão da ferrovia estava vinculada a outro importante projeto: o da construção de uma usina termoelétrica, cuja execução e funcionamento trariam muitos empregos e benefícios à região.

          Independentemente das acirradas mazelas trazidas aos palanques pelos dois prolixos e veementes políticos, a prioridade do traçado da via férrea já há muito havia sido estabelecido e decidido em esferas superiores, de modo que os corpos começaram a ser, lamentavelmente, desenterrados.

          A lúgubre tarefa de exumar os corpos atraía centenas de curiosos. Eram parentes dos mortos, aposentados, estudantes e desocupados em geral. Aglomeravam-se em torno dos trabalhadores que tinham como tarefa desmontar cuidadosamente os elaborados túmulos e capelas e cavar a terra em busca dos restos mortais de antigos e ilustres Floridenses, cujos nomes e retratos podiam ser vistos nas lápides e cruzes de mármore. Com as tumbas mais pobres e anônimas a tarefa era muito mais fácil. Era apenas um trabalho de demolição com marretas e britadeiras. Entre os expectadores diários dessa labuta, comparecia sempre uma turma de alunos do colégio estadual, que gazeteava as aulas ao menor sinal de novidade. A empreitada toda de remover os mortos levou duas semanas e na mesma proporção em que a importância dos defuntos diminuía, decrescia também o número de pessoas querendo ver o traslado dos ossos de um cemitério para outro. Às vezes, um turno terminava sem tempo para um último transporte e nem por isso se davam ao trabalho de levar os achados para o depósito onde deveriam ficar guardados. Então esqueletos desmontados e crânios recheados de terra jaziam expostos ao sereno da noite até o dia seguinte.

          No último dia da remoção, no final da jornada de trabalho, quando a derradeira sepultura foi aberta, um fato inusitado aconteceu. Pena que não houvesse mais tantos curiosos para presenciar aquilo. Estavam lá apenas os operários da construtora, alguns funcionários da prefeitura — encarregados de proceder aos registros de baixa e admissão dos finados, o magérrimo Bonifácio — consumado boa-vida e ex-marido de Rosa (filha do Coronel Isidoro) e, é claro, aquele bando de ginasianos que não arredava pé, ora perturbando os coveiros de ocasião, outras vezes sabotando máquinas, ou simplesmente promovendo algazarras entre eles. O fato é que a dita cova aberta revelou um corpo sepultado há mais de trinta anos, surpreendente e assustadoramente preservado. Restos do ataúde de pinho e andrajos de roupas ainda eram visíveis. Levantaram o corpo e encostaram-no em uma das traves de madeira que sustentavam a cobertura de lona no local da escavação. Para que se equilibrasse de pé, encaixaram o vão de suas omoplatas no pau e trouxeram seus pés um pouco para frente de tal modo que o infeliz parecia estar a se coçar no esteio como fazem os cavalos. O “Corpo-seco” — como foi imediatamente apelidado o defunto — teso, enegrecido de terra, fazia uma triste figura ali diante daquelas pessoas esquecidas do respeito aos mortos. Os pés estavam descalços e podia-se ver cada falange dos dedos envoltos em finas tiras de carne ressequida. Devido à posição em que fora colocado, sobressaíam dos andrajos das calças as canelas finas e os imensos joelhos com os feixes de músculos bem definidos pela preservação favorecida pelo chão salobro em que fora confinado. A região pélvica e o abdome eram achatados e o contorno do osso ilíaco desenhava-se na pele esticada como o couro de um pandeiro. Os músculos e ossos do tronco não apresentavam a mesma inteireza do resto do corpo. Havia ossos quebrados e buracos enormes nos feixes de músculos peitorais que apenas uns fiapos de camisa ainda cobriam. Mas o mais aterrador eram os olhos murchos como ameixas secas nas órbitas escuras e sem pálpebras. A boca era apenas uma fenda repuxada que exibia dentes grandes e amarelos desprovidos de gengivas. A maior parte da pele e toda a gordura sob ela haviam desaparecido, mas os músculos estavam intactos e grudados firmemente nos ossos. Todos tinham ficado momentaneamente estarrecidos ante a visão daquele último habitante despejado de sua morada em cuja plaqueta de metal lia-se “perpétua”. Inumeráveis conjeturas povoaram a mente daquela gente. Histórias macabras corriam de boca em boca nos botequins, lares e rodas de amigos. Satisfeita a curiosidade, o Corpo-seco foi devidamente guardado no depósito junto com outras ossadas para ser conduzido ao cemitério novo no dia seguinte.

          Neu-Canjica, Chico-Botinha, Paulão, Takashi e Pelotinha, que haviam presenciado a descoberta e a guarda do Corpo-seco, tornaram-se o centro das atenções nas conversas intermináveis que ocorriam sempre ao lado da fonte de águas dançantes e luminosas do jardim recém-reformado — aliás, mais uma inauguração do candidato progressista. Já se sabia, por exemplo, segundo informação obtida de um dos funcionários do cemitério, que o defunto fora o chefe de uma família de agricultores chacinada nos anos trinta por grileiros de terra. Um fato leva a outro, e lá pelas tantas o nome do Coronel Isidoro de Oliveira estava irremediavelmente envolvido na história das mortes dos agricultores, pois corria à boca pequena que a maior parte das terras do dito Coronel havia sido adquirida através de engodos, tramóias e até a força de armas.

          — O Corpo-seco vai ser enterrado de novo amanhã — disse Neu-Canjica lentamente, como que tendo ideias. Paulão captou-lhe a intenção de uma possível traquinagem e propôs ao Takashi:
          — Ô Taka, ‘cê bem que podia tirar umas fotografias, hem?
          — Fotografia? Fotografia de quem? — respondeu Takashi desprevenido.
          — Do Corpo-seco lá no depósito, ora! — esclareceu Neu-Canjica com ar maroto.
          — Cê tá louco? Tô sem a câmera. O estúdio tá fechado! Meu pai saiu direto do estúdio e levou a chave.
          — Seu pai foi projetar filme de sacanagem lá na máquina de arroz do Hiroshi. Vamos até sua casa pegar a chave reserva — sugeriu o Chico-Botinha, prontamente.
          — Gente, vamos deixar isso pra lá. Esse negócio não vai dar certo — resmungou Pelotinha, já tremendo de medo e antevendo o que, sem dúvida, iria acontecer. Ele sabia que, uma vez posta uma travessura na cabeça, nada iria demover seus amigos da ideia. “Alea jacta est” — pensou ele, que tinha aprendido essa expressão em Latim exatamente naquele dia.

          Conversa vai conversa vem, foram todos para a casa do Takashi, com aqueles inconfundíveis risos de moleques inconsequentes estampados nas caras cheias de espinhas. Não acharam a cópia da chave e a outra realmente havia sido levada pelo velho japonês, de modo que decidiram esperar na praça até que o velho voltasse e fosse dormir. Já era bem além de uma da madrugada quando enfim, de posse da chave do estabelecimento, muniram-se de câmera, filme, flash e baterias e rumaram para lá. A caminhada até o local da nova estação levaria no mínimo mais uns trinta minutos. Assim, entre uma coisa e outra, chegaram ao depósito por volta das duas da manhã. O silêncio era de dar medo, pelo menos no Pelotinha que já tremia só de saber que teria que invadir o depósito e lá dentro topar com ossos de gente e o aterrorizante corpo seco. Os outros, mais corajosos, pareciam não sentir medo algum, embora andassem quase colados uns nos outros e sussurrassem palavras de encorajamento entre si. Tudo estava precariamente iluminado com uma única lâmpada num poste dentro da área alambrada, onde ficava o barracão do depósito. Havia um enorme portão fechado com corrente e cadeado, e que, estranhamente, estava aberto. A porta do barracão também estava meramente encostada. Os garotos ficaram surpresos e inquietos, pois que tinham visto muito bem o funcionário fechar tudo no final da tarde. Mas assim mesmo entraram...

          Antes da ousadia desses marotos, mais ou menos meia-noite, o Coronel Isidoro de Oliveira, vestido em seu camisolão fora de moda, preparava-se para dormir quando um ruído nas imediações da sede de sua fazenda atraiu-lhe a atenção. Assemelhava-se ao ruído de alguém caminhando sobre os pedriscos do pátio, por certo alguém bem conhecido, pois que os cachorros estavam absolutamente calmos. “Adelaide!” — pensou. O velho vinha tendo discussões homéricas com sua filha Rosa que dava liberdade demais a Adelaide, sua neta adolescente. Isso não eram horas de uma garota de apenas dezesseis anos chegar a casa. Precisava conversar seriamente com as duas mulheres, mãe e filha, afinal viviam sob seu teto e às suas custas e, portanto, sua palavra tinha que prevalecer. Havia tantas coisas com que se preocupar: o processo que estavam movendo contra ele na justiça do trabalho aborrecia-o bastante. Onde já se viu? O agregado vivera dois anos em sua fazenda, tinha plantado o que quis, criado galinhas e porcos para o gasto da família dentro de suas terras e ainda reclamava no sindicato o pagamento de direitos? Que direitos? O único trabalho que fizera fora cuidar de algumas vacas de leite, ordenhá-las e dirigir o velho caminhão na linha do leite até o laticínio em Adamantina. Quem sabe, com um pequeno agrado ao juiz, seu amigo, o caso se resolvesse sem prejuízos. Ah! E o ex-genro que não o deixava em paz, ameaçava-o, exigindo uma parte de sua fortuna depois da dissolução do casamento com Rosa. Salafrário, vagabundo. Nunca moveu uma palha. Embuchou-lhe a filha, casou na marra, abandonou-a depois e agora lhe quer o dinheiro. Nem nunca! Andava encafifado também com um assunto idiota desde que ouvira sua neta comentar na hora do jantar sobre o estranho achado no canteiro de obras da estação. Adelaide era estudante do colégio estadual e tinha ouvido os boatos que envolviam o nome da família com a morte dos agricultores e a história do corpo seco retirado da cova naquela tarde. Era para ele uma história há muito esquecida e que agora vinha à tona com os desenterramentos no cemitério velho. História que ele não se lembrava muito bem ou não podia se lembrar, visto que sofria de esclerose num certo grau, além de ter um coração já fraco — como lhe asseverara o médico. Sentou-se no sofá de couro da enorme sala e acendeu o cachimbo. Por entre a espessa nuvem de fumaça azulada olhava pela enésima vez as rodas de antigas carroças pendentes do teto alto, à guisa de lustres. O chão era assoalhado com tábuas largas e havia adquirido um brilho de espelho após ser incansavelmente encerado ao longo de muitos anos pelas empregadas da imponente residência rural. Havia, além do sofá, móveis antigos de madeira nobre, artisticamente entalhada. Tudo era um luxo austero e pesado, que refletia exatamente o temperamento forte e resoluto do velho fazendeiro. Enfeitavam as paredes de tijolo aparente arcabuzes e garruchas do começo de século, fotos amareladas mostrando cenas de homens desmatando florestas. Em uma delas, ricamente emoldurada de madeira, com incrustações de madrepérola, o Coronel, jovem e forte, apertava a mão do presidente Getúlio Vargas. Entre as duas imensas janelas que se abriam para o pátio havia dois sabres de cavalaria, reluzentes, cruzados sob um escudo de nobreza em cobre e prata. Reparou que as venezianas de uma delas estavam escancaradas. Levantou-se com dificuldade para ir fechá-las. Foi quando essa mesma janela emoldurou um vulto horripilante e maltrapilho que nesse momento invadia a sala. A luz fraca do aposento iluminou-lhe a face, enegrecida, de dentes absurdamente grandes, que pareciam estar fora da própria boca num sorriso demoníaco. Entre os trapos da camisa via-se um tórax magro de músculos que se moviam como se fossem feixes de elásticos. Estava dentro da sala e vinha em sua direção. O velho se imobilizara por completo, petrificado de pavor diante da inexplicável aparição. Não queria crer no que viam os seus olhos. O invasor começou a andar num círculo, como um felino que tocaia sua presa. O velho recobrou um pouco da antiga coragem e começou também a se mover da mesma maneira, como se estivessem em lados opostos de um carrossel. “Quem é você? O que quer de mim?” — o velho berrava. A estranha criatura nada respondia. Em dado momento o velho estava entre os dois janelões. Num ímpeto de valentia e esforço arrancou da parede uma das espadas e passou a brandi-la em direção ao invasor. “Eu te matei, eu te matei” — gritava o velho, as veias do pescoço estufadas, arfando como um porco, o coração falhando em arritmias. Em sua mente conturbada reconhecia aquele renitente lavrador que o enfrentara no passado e que fora, por ele e seus capangas, trucidado a golpes de facão juntamente com a mulher e filhos. Nos estertores da morte — lembra-se — o agricultor havia cuspido sangue e palavras de ódio e vingança, as quais, agora, ocorriam ao fazendeiro, nítidas como no dia em que haviam sido proferidas. “Eu vingarei a minha família, eu vingarei a minha família, não me vou desta terra enquanto não vingar a minha família...”

          O barulho e a gritaria do térreo despertaram os demais moradores da casa que dormiam no andar superior: a filha, a neta, uma irmã idosa e duas empregadas que, vindo de seus quartos em trajes de dormir, acorreram para o salão de onde provinha o tumulto. Mas o rumor cessara por completo. Quando entraram na ampla sala, depararam com o velho caído rente a parede entre as duas janelas, as feições deformadas num esgar de horror, o cachimbo fumegando sobre o peito e, cravada sobre sua grande barriga ensanguentada, a espada militar oscilava quase imperceptivelmente. De fora, agitando levemente as cortinas, vinha uma aragem, poder-se-ia dizer fresca, não fosse o terrível mau cheiro de carne podre que a infestava.

          Neu-Canjica foi o primeiro a entrar no depósito. Tinha trazido uma lanterna e guiava os demais através do labirinto de caixotes, ferramentas, pneus e outras peças típicas de um canteiro de obras. Sabiam que os trabalhadores tinham depositado o Corpo-seco sobre um jirau envolto em uma lona. Localizaram o volume e, com extremo cuidado, o desembrulharam para a fotografia. A foto — comentavam os rapazes — ia ser a sensação do ano entre as meninas. Intrigante: o Corpo-seco parecia estar diferente. Os feixes de músculos ressequidos brilhavam como se estivessem molhados de sereno ao ser focado pela luz da lanterna.

          — Vejam! Olhem isso! — berrou Paulão, assustado e assustando os demais. — Tem sangue nas mãos do Corpo-seco!
          — Caramba! Como pode ser isso! — comprovou Chico-Botinha, examinando as mãos do cadáver.
          — Vamos embora daqui, gente... — choramingou Pelotinha, já quase molhando as calças.
          — Porra! Tira logo essa foto, Takashi — urgiu Paulão — e vamos dar no pé, cambada.

          Takashi, o filho do fotógrafo — não negando a vocação natural da raça para esse mister — ainda teve a fleuma de procurar um ângulo favorável para o clique. Posicionou-se, ajustou o foco da objetiva, ergueu o equipamento de iluminação e disparou o obturador. Mesmo antes que o ofuscamento provocado pela potente luz do flash se dissipasse, assistiram, petrificados de terror, como uma escultura de areia que desmorona, ao Corpo-seco se decompor instantaneamente e se transformar num monte de pó sobre a lona.

 
HFigueira
Enviado por HFigueira em 21/06/2011
Reeditado em 18/11/2012
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