FRONTEIRA DO SILÊNCIO
 
                                 Capítulo XIV
 
   Os dias têm sido agradáveis na companhia de Miguel. Não obstante o fato de que uma criança na idade dele tenha desencarnado tão prematuramente vítima de uma terrível doença, a presença dele de certa forma me proporciona alegria e não me sinto tão só. Acho que ele também está contente por estar comigo, apesar de vê-lo vez por outra com um ar de tristeza por estar longe dos pais e dos irmãos. Penso que crianças não deveriam morrer e sim aproveitar a vida até o fim sem o risco de ser vitimado e ter sua vida ceifada de forma tão curta. Mas cada um tem seu destino definido ao encarnar e nosso futuro a Deus pertence. Assim vamos tocando nossa estadia no plano espiritual como nos foi destinado até a oportunidade de nova outra encarnação.
Miguel diverte-se como toda criança e já fez amiguinhos com os quais passa o tempo enquanto fico a observá-lo nas minhas horas de folga quando não estou participando de atividades coletivas de auxílio fraterno. Ontem veio com um amiguinho e me pediu que eu contasse mais um trecho da minha história. Acomodados no alpendre da casa comecei a minha narrativa sob os ouvidos atentos dos pequenos travessos.
 
     Após tantos dias de angústia e expectativa em busca de um resultado satisfatório finalmente os homens estavam radiantes. O mar calmo e o tempo bom facilitaram a pesca para a guarnição do Valente. Todos estavam empenhados em recolher a pesada rede abarrotada de anchovas. O cardume era grande e tão logo acomodavam os peixes nas caixas de isopor com gelo no porão tratavam de lançar novamente a rede ao mar colocando sempre o barco em movimento lento circundando o cardume fazendo com que os peixes ume se juntassem facilitando a captura. Contentes com o resultado da pesca paravam apenas para breves repousos e para alimentarem-se retornando logo às atividades. A abundância de peixes satisfez as expectativas e em pouco mais de trinta horas conseguiram abastecer o porão do barco, não havendo mais onde colocar tanto peixe. Era hora de partir e aproveitar o mar calmo para o regresso, pois seria temeroso enfrentar tempo ruim com toda aquela carga.
 
   Noel abraçou o amigo Gilmar e chamando os demais, reuniram-se na popa da embarcação e realizaram uma prece de agradecimento pela bênção recebida. Mais uma vez Gilmar, homem religioso, fez uma prece olhando para os mais novos e exemplificando que quem faz o bem recebe o bem, lembrando que haviam passado alguns dias no mar e apenas havia pescado pouco mais que para o sustento deles à bordo do barco e que no entanto, após terem resgatado aquele homem na bóia tudo havia mudado para eles. Era como se Deus os estivesse recompensando pela boa ação. Todos concordaram e se propuseram a rezar um Pai Nosso quando de repente Ivan teve uma idéia: esperem! Tudo mudou para nós quando salvamos aquele homem, não é mesmo? Então que tal incluirmos ele no grupo a realizar a prece? Mas ele está desacordado e dorme profundamente, não tendo nem se alimentado até agora, ponderou Flávio. Só um instante. Deixe-me ver como ele está, disse Ivan, responsável pelo pobre homem. Saiu do grupo e entrou na pequena cabine onde na parte posterior por trás da salinha de navegação quatro catres estreitos serviam de camas para o descanso e onde eram guardados os pertences dos tripulantes do Valente. Em um deles estava deitado o homem resgatado que ainda fraco, mal se mexia.
 
   Aproximando-se, Ivan tocou levemente no meu ombro e eu me mexi. Ivan afastou-se com certo receio de estar importunando. Em seguida voltou a tocar no meu braço, desta vez mais firmemente, o que fez com que eu despertasse, embora extremamente fraco, pois até então apenas repousara sem me alimentar. Ivan falou: Boa tarde. Sossegue, você está entre amigos.

   - Onde estou? Quem é você? Balbuciei perguntando a Ivan, enquanto me apoiava nos cotovelos. Ivan, mais uma vez, respondeu com voz branda e pediu que eu ficasse calmo. Estamos em um barco de pesca e resgatamos você inconsciente em uma bóia de sinalização. Esforçando-me, levantei um pouco o corpo e olhei em volta e nada disse deitando novamente. Venha, vamos lá fora. Você precisa respirar um pouco de ar puro e conhecer os demais tripulantes. Apoiando-me no seu ombro, levou-me para a popa onde os demais esperavam. Flávio e Henrique apressaram em ajeitar uma acomodação forrando uma aducha de cabos com um pedaço de lona para que eu pudesse sentar-me. Todos me cercaram e foram se apresentando, sempre de maneira cordial procurando tranqüilizar-me. Em volta de mim rezaram um Pai Nosso enquanto ao longe o sol começava a se por.
 
   Após a prece Ivan apressava-se ajudado por Flávio a preparar um jantar, Henrique fazia às vezes de timoneiro rumando o Valente para terra firme enquanto Noel e Gilmar tentavam estabelecer um diálogo comigo, ainda meio desorientado. Quanto mais perguntavam menos obtinham respostas, o que os fez constatarem que eu necessitava repousar por estar tão fraco que não conseguia concatenar o raciocínio, talvez pelo longo tempo que fiquei naquela situação terrível. Sem mais incomodar-me apenas fizeram-me companhia enquanto os rapazes serviam uma suculenta refeição a base de anchovas grelhadas e arroz.
 
    Apesar de fraco comi compulsivamente como se estivesse querendo compensar o tempo em que fiquei com fome. Após a frugal refeição comentavam sobre o êxito da pescaria e conjecturava de como fariam com o obtido na viagem. Extenuados pela jornada, lentamente um a um foram-se deixando dominar pelo sono enquanto Ivan conduzia me conduzia de volta para o pequeno alojamento deitando-o num dos catres e Noel acendendo seu cachimbo assumia o timão liberando Flávio para o descanso. Ivan preparou uma garrafa térmica de café e entregou ao tio, desejando-lhe um bom turno no timão. Noel apenas sorriu enquanto Ivan recolhia-se em um dos catres. Manobrando o Valente, Noel pitava seu cachimbo olhando o reflexo prateado da lua na superfície calma do mar. Seu rosto esboçava um discreto sorriso de satisfação e olhava o horizonte como se estivesse tentando imaginar as pessoas amigas e os familiares à espera deles na pequena aldeia onde moravam. 
 
   Navegaram lentamente devido ao peso da carga por toda noite e ao amanhecer Gilmar que estava no timão avistou terra, seguindo direto para a pequena aldeia onde moravam. Em menos de duas horas todos já acordados acenavam para terra, onde parentes e amigos os esperavam felizes pelo regresso são e salvos. Como não havia cais era necessário fundear o Valente e retirar a carga utilizando embarcações pequenas trazidas por amigos até o local do fundeio. Finalmente, retirado todo o pescado, os ocupantes desceram em terra firme, desta vez levando consigo para a pequena aldeia um estranho homem parcialmente desmemoriado que resgataram no mar.

 
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Cônsul POETAS DELMUNDO – Niterói – RJ
Valdir Barreto Ramos
Enviado por Valdir Barreto Ramos em 22/09/2011
Reeditado em 22/09/2011
Código do texto: T3234940
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