Carnivale 

                                              para o amigo Jorge Luiz

                                                                                      


Dias de carnaval que já não eram os mesmos. Se eu pudesse pegava um avião direto para Amsterdã. Ainda bem que deixei meus filhos Nassauzinho e Bárbara longe da cidade grande. Muita violência e pouca folia. Bons tempos, os da lança perfume e um bom conhaque. Agora deram de usar Prozac e caipirinha de aspartame - humor sintético e açucarado com final amargo ! 
Naquele dia, arrombaram minha casa, abriram meu armário, vestiram minhas roupas do avesso. Todo mundo via a etiqueta.... tsk, tsk, tsk.... a minha lira virou pastiche, encheram os bolsos com os meus vocábulos. Vasculharam minhas gavetas. Pintaram as caras pálidas com as minhas convicções. Versos proferidos ao léu, mas que bando de pulhas! - pensei. Cultua_dores de egos embaçados pela neblina da usura ! Idéias buriladas ao longo de décadas, todas tão bem guardadas na minha caixinha pink de saberes mil – fizeram uma terrível pândega -  gloss, palavras turbinadas por esse coração que já ralou nas ostras, todas pisoteadas sem misericórdia. Purpurina e batom jogados por todo lado. Pensei comigo: perderam mesmo o respeito, gente voraz de identidade, essa ! Devem ter gasto uma fortuna com tantas máscaras e fantasias !
Para terminar, borrifaram o fino perfume das minhas sinestesias em suas cabeças de caciques que só jumentavam amarguras toscamente maquiadas de profundos pensamentos... e esse Ibama que não faz nada ! - pensei - Pobres pássaros mortos, só para ostentar o cocar de filósofos de araque. Essa coisa de se auto-alardear burlescamente vem de longe ! Minha bisavózinha, já dizia com seu ar sábio: “Pela aragem já se vê a carruagem". Saíram trôpegos e embriagados gritando a marchinha de carnaval que mais parecia uma algazarra de sanatório. Da janela, vi o aglomerado e eu já nem sabia o que era aquilo - talvez uma procissão dos tempos coloniais ?! -  Passei a mão trêmula na minha testa que suava - Oh yes ! I was shaking, man ! - e tive um breve delírio: Vi as ruas lamacentas da terra brazilis, esgotos a céu aberto. Moçoilas amancebadas de olhar tristonho espantavam moscas em lombos de burro. Senhoras gordas carregadas em liteiras, de tanto ócio já não conseguiam mover as articulações. À frente, rapazes com olheiras profundas carregavam o andor da santa, hummm... ímpetos estranhos e perversos... tardes looooongas nos canaviais... cruzes !...esfreguei os olhos e pensei : Preciso parar de ler História do Brasil colonial antes de dormir! e logo contemporizei : Bem...pode ser um trio-elétrico histérico, daqueles que cismam em amofinar os que querem dormir em paz! Uma coisa é certa: Patética terça-feira que virou cinzas antes mesmo do dia raiar. Cogitei a possibilidade de ligar para a polícia, mas fiquei com medo de chamar o ladrão....isso, o Chico me ensinou! então, chequei o meu cavalo branco no estábulo. Ele ressonava com sua linda crina. Sacudiu a cabeça e me devolveu um olhar 007 de deus Equus. Eu disse: É, a vida é pra valer! Vá dormir, Marvin, querido ! Eu fiz o meu melhor. Aquele bando de biltres já se foi. A lança estava bem escondida, embaixo do meu pé de laranja lima onde dorme uma infância. Pelo menos isso: não fizeram nenhuma maldade com o Marvin, nem saquearam a minha esperança de justiça, ainda que soterrada !
Lá longe, ainda pude vê-los. Espichei o olho e pensei : Por Zeus ! o que fizeram com o rei Momo, herança de Dionísio ! O gorduchinho tri- eletrizado, do lado de uma colombina de barba com uma estupidez estapafúrdia, balançava a pança e cantava atirando confete "...eu sou a filha da Chiquita bacana, nunca entro em cana porque sou família demais..." Outro carregava uma placa escrita em letras garrafais - "Somos do bem: distribuímos bananas para os animais !"
Do meu quarto azul piscina, fechei a janela injuriada e bradei: Pro raio que os partam, São Jorge é mais! Foi então que ouvi o barulho de um relâmpago es-tron-do-sa-men-te poderoso! e nesse momento me dei conta - Estava vestida com as roupas e as armas de Jorge. Nem mesmo em pensamento eles poderiam me fazer mal. 



        
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* a letra usada na Música "Jorge de Capadócia" é mesmo parte de uma antiga e linda oração à São Jorge. 

"...eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me enxerguem, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrarão sem ao meu corpo chegarem, cordas e correntes se arrebentarão sem ao meu corpo amarrarem..." 















Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 12/01/2007
Reeditado em 03/02/2008
Código do texto: T344623
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