O Inseto

A Gregor, quase um século depois (Ricardo...)

I

Acordei com a chuva mansa tamborilando no telhado de zinco. Possivelmente ainda fosse madrugada, pois a escuridão se infiltrava por todos os poros do ambiente, vedando qualquer passagem de luz. Isso levemente me atordoou e senti meu corpo rijo e formigante como se eu estivesse prestes a um colapso. Mesmo assim procurei me mover, mas minhas costas doíam por ficarem, quem sabe há quanto tempo, esparramadas sobre uma superfície sólida e fria. Só aí me dei conta, e surpreso, de não estar na cama e também por não sentir o cheiro habitual de mofo do quarto; cheguei mesmo a desconfiar de que pudesse estar ainda imerso num pesadelo, mas algo parecia rejeitar essa hipótese, o que despertou um certo temor. Percebi, além disso, que não movia os maxilares nem mesmo a língua, de modo que as interjeições de admiração e espanto, como feras agitadas, estavam acorrentadas à ânsia de exprimi-las. E não foi menor a minha surpresa quando uma voz de indignação rompeu aquele asilo do silêncio:

- Vamos deixá-lo aqui mesmo, fora do abrigo! Que vá perturbar o Diabo em pessoa!

Apesar de aquela vociferação toda ser perfeitamente audível, parecia-me algo distante, como se se diluísse com os ruídos do prédio. Por isso me parecia evidente que não se referissem a mim, pois eu sabia onde estava: ali mesmo no meu quarto, protegido pelas mesmas paredes nas quais tantas vezes colei folhas com alguns rabiscos de filosofia e de lógica. O que me acontecera durante a noite foi um pequeno descuido, caíra simplesmente da cama e nada mais. Resolvi esticar o braço para procurá-la e este movimento corriqueiro foi o suficiente para virar o meu corpo todo àquele lado, gerando um ruído estranho como seu eu farfalhasse. Retornando à posição de início, senti os outros membros se agitarem como se fossem independentes do tronco. Assim que se acalmaram, procurei passar as mãos pelo rosto, porém o que senti foi um conjunto de cerdas em vez de dedos. Deduzi que algo estranho havia ocorrido, não exatamente quando ou por quê, apenas que novas desgraças se somariam àquela. Procurei realizar um enorme esforço para ficar, pelo menos, sentado, mas era impossível para quem estava preso numa espécie de carapaça, sob cuja borda se encaixavam, no lugar de braços e pernas, inúmeras patinhas semelhantes entre si na forma e no comprimento. Além disso, o meu rosto também havia mudado, era algo liso e sem expressão, e a cabeça me parecia um pouco achatada como um capacete militar, guarnecida por dois filetes que supus serem antenas.

Aqueles gritos de ódio voltavam a romper as minhas conjecturas e pareciam agora avançar gradativamente. Não sei dizer o que realmente senti, se receio de que invadissem o meu quarto e fosse tomado por louco ou que pensassem como eu havia me permitido chegar àquela situação miserável. Durante boa parte da minha vida, até aquele momento, incomodava-me sobremodo os olhos de esguelha que dirigiam aos meus sapatos, já que era difícil me olharem na cara sem que não romperem em risos; e quando se arriscavam a fazer comentários, sempre por detrás das minhas orelhas, eram, na maior parte das vezes, jocosos. Era até engraçado, porque a impressão que eu costumava ter, em diversos momentos, é a de que, à minha passagem, se instaurava, de pronto, uma espécie de júri popular, em que se discutia a minha conduta: eu era visto como um homem pacato demais por uns e meticuloso por outros; alguns até atribuíam esse meu excesso de cuidado, mesmo para com as situações mais triviais, a uma necessidade de me colocar no pedestal dos “sóbrios”. Seja como for, reconheço que procurava dar a tudo que me cercava um trato de ordem, em razão de não ver a minha existência se dissipar em meio às nuvens de zombaria e despudor com que a maioria deles tratava a realidade. Sempre me esforcei por não dividir o meu olhar com esses seres que se deixam atrelar, como carroças, a cavalos acossados pelos relhos da impulsividade. Muito pelo contrário, cedi o meu lugar no mundo diversas vezes a fim de não ser atropelado por esse levante de brutos. Agora estava ali, sólido, preso naquela condição animal e, também, sentindo cada vez mais frenéticas aquelas patinhas ridículas. Era absurdo pensar que até há pouco tempo eu dispunha da incrível habilidade de descer da cama com elegância e dar-me o direito de me espreguiçar com técnica, apesar de tantas concessões feitas a mim. Realmente muita coisa mudou. Nunca me sentira tão oprimido a ponto de me ver reduzido a uma situação de total inocuidade. Ainda que eu desejasse acabar com tudo, era, decerto, a mais frágil das criaturas sobre a Terra.

- Vamos acabar logo com ele de uma vez!

- Que nada! O melhor é ficarmos aqui, longe desta garoa! Logo virá água braba e a enxurrada vai arrastar tudo embora!

Essas palavras fizeram com que meu novo corpo se contorcesse num espasmo contínuo. Fossem ou não dirigidas a mim, sabia que algo ruim aconteceria, talvez eu estivesse próximo de alguma revelação. Se eu pudesse ao menos chamar a Dona Consuelo, eu os denunciaria! Mas até sei qual seria o seu parecer sobre o caso: “Ah, seu Ricardo, um homem como o senhor, com seus já beirando os quarenta, neste estado de apreensão! Além disso, o que o senhor faz aí no chão, vestido com esta fantasia ridícula querendo se passar por menino? Quantas vezes já disse a vocês que aqui não são permitidas essas esquisitices, afinal esta é uma pensão familiar.” Devo confessar que a senhora tem toda a razão, Dona Consuelo, mas fazer o quê se não posso sair daqui? Nem mesmo ter conhecimento da extensão do meu problema? Quem sabe se daqui a alguns dias a senhora viesse ao meu quarto, puxasse uma cadeira e, mateando, me dissesse se tratar tudo isso de algo perfeitamente natural e até fosse possível que eu me habituasse? Infelizmente não há mais tempo, porque esse motim se encorpando por detrás das paredes abafa minha voz e imobiliza as minhas ideias. Aos poucos, tudo passa a ser muito certo: eu, neste estado, de barriga para cima, mal conseguindo respirar e todos eles, tomados de revolta, pondo a porta abaixo. De repente, estaqueados ante a minha miséria, num misto de comiseração e dever, me pedissem para ficar em pé, já que assim lhes pareceria mais honroso. Não, não! Em face dessa extravagância, estridularia, roçando uma pata na outra, a fim de afugentá-los.

Era difícil pensar nessas coisas todas. Até ontem eu me detinha à linha vertical do pensamento, sem curvas ou desvios, procurando escavar, como uma draga, o sentido mais profundo de um e outro aforismo do analecto moderno; e agora, no entanto, tentava romper, sem sucesso, o invólucro monstruoso e rijo da queratina. Quem me dera se, de repente, se operasse uma obra milagrosa, quem sabe se eu me desse conta de que vestia mesmo uma fantasia, dessas que se alugam em qualquer loja de segunda-mão. Bastaria me livrar de todo o torpor e catar o zíper em algum lugar debaixo do queixo e pronto! Estaria livre e, com razão, bastante suado. Tomaria logo uma boa ducha e voltaria a me deitar sobre o colchão mole e fedorento há muito negligenciado pela camareira. Não! Não! Tudo eram ilusões que tentavam alguma trapaça. Não! Não haveria como enxergar a situação de outra maneira: era aquilo e somente aquilo, um inseto, um insetarrão! O que ainda não sabia era de que espécie, isso se eu pertencesse a alguma existente, provavelmente eu fosse o único, e, dadas as circunstâncias, o único de uma espécie praticamente extinta para o pesar dos entomólogos...

II

A chuva resolveu abandonar aquela face de serenidade para vestir outra de fúria e ímpeto, atacando as paredes e o telhado como se empunhasse um sabre. Cheguei até a associar as estocadas da chuva e, sobretudo, o ribombo dos trovões àquelas batalhas épicas em que catapultas ou canhões, na ânsia de glória, tentavam penetrar a natureza praticamente inexpugnável das fortalezas. Talvez por esse motivo me pareça injusto não reconhecer que a junção de todos estes acontecimentos estranhos formava um espetáculo formidável! Aliás, um espetáculo digno de aventar por semanas nas páginas dos mais prestigiados periódicos, se eu não fosse, obviamente, o alvo miserável deste conflito. Mas não demorou muito para que aquela tempestade amainasse e aquele filme evadisse por completo da minha cabeça, e eu fosse tomado agora pela sensação estranha de que o meu quarto todo seguia em direção não definida. Era como se eu estivesse dentro de um esquife rumo à sepultura, acompanhado, inclusive, por um cortejo de vozes ruidosas que me fizeram lembrar o grasno de corvos. E como este esquife possuía uma dimensão muito maior que o meu corpo, justificava a razão de eu rodopiar ali dentro de um lado a outro, não havendo com evitar choques abruptos contra as paredes, isso quando eu não quicava como uma bolinha dentro daquela enorme caixa. Mas depois de alguns metros aquele balanço cessou por completo e, para minha surpresa, vi cair um jorro de luz pardacenta sobre os meus olhos. Embora com a visão sensivelmente prejudicada pela claridade, mergulhei num estado de pânico contido ao notar que o telhado ia sendo arrancado pelo vento forte; certamente um furacão destes que vemos pela tevê havia chegado por ali, pensei. Mas pensei errado, tudo estava errado! Era uma mão gigantesca que destelhava meu quarto! Quarto? Aquilo não era o meu quarto, em nada se assemelhava, sequer as paredes eram de alvenaria e madeira, eram sim de metal. Aos poucos minha visão foi se ajustando ao foco e aquele ambiente me fez lembrar aquelas antigas latas de bolacha que minha mãe costumava servir à tia Amélia aos sábados, e que malditos sábados aqueles! Sempre me convocavam para comprá-las, justo na hora em que eu encerrava um capítulo sobre Kant ou quando participava de um debate fervoroso com Hegel. Eu montava com desgosto a velha Caloi e percorria umas boas quadras, rangendo os pedais tomados de ferrugem. Maldita tia Amélia! Malditos sejam os sábados! Agora ali (vejam só!) estava um homem amante dos compêndios, encerrado numa possível lata de bolacha, revestida pela mais cruel das ironias.

III

Depois daquelas horas de breu, conseguia agora vislumbrar uma abóbada ampla e cinzenta, semivestida por nuvens negras que se moviam lentamente, deixando cair gotículas d’água sobre o meu abdômen sutilmente abaloado e segmentado em camadas uniformes. Por duas ou três vezes, o meu recinto metálico foi assombreado ligeiramente por rostos zombeteiros. Não sei por que motivo eles achavam graça em me assoprar. Talvez fosse mesmo divertido me verem girar por conta da minha leveza. Minhas patinhas lutavam contra esses pequeninos tufões, como se estivessem enredadas numa teia. Apesar de me chatear um pouco com a brincadeira, pelo menos eu respirava melhor e podia observar algum detalhe do novo Ricardo, mas não o suficiente ainda para definir que tipo de inseto. Sabia apenas que tinha uma coloração amarelo-esverdeada e cerdas negras, e, nas articulações, algo entre marrom e vermelho: parecia exótico. Mas o que isso lhes importava? Estavam todos ali reunidos em torno de mim para exercerem os seus desejos mais sombrios, enquanto eu me sentia um palhaço num picadeiro, tentando lembrar alguma peraltice nova a fim de retardar as vaias.

- Acho que a gente pode esmagá-lo com a ponta do cabo da vassoura, não acha, Golias?

- A vassoura nova que minha mãe comprou? Enlouqueceu? Melhor é atirar uma pedra mesmo.

- Para com essa crueldade, gurizada! Deixa o bichinho aí mesmo ou larga ali no córrego.

- Mas assim ele não morre.

- Morre sim, mas a gente nem vê. Já está na hora do jogo e vocês ficam aí perdendo tempo com esse troço, como se nunca tivessem visto um bicho!

A lata foi logo apanhada e novamente me senti sendo jogado como um brinquedo. Talvez tivessem achado melhor me dar uma trégua. Sim! Não morreria de pronto, o tempo se encarregaria disso. Acredito que me colocaram sobre o leito do tal córrego, pois senti que deslizava sobre ondulações. Um estranho, mas suave silêncio desceu sobre mim e depois de alguns metros flutuando sobre a água, vi despontar o sol forte que abatia, dissolvendo, aquelas nuvens que anunciavam catástrofe. Raios de luz incandescentes aclaravam as paredes de metal escovado; e pensei que se eu pudesse vestir um rosto humano, seria justamente aquele o momento em que se abriria nele um sorriso largo...

 

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 15/02/2012
Reeditado em 13/11/2012
Código do texto: T3500019
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