Fim de Semana Incidental - Pequena aventura de Neide

Capítulo 1: O convite

De repente alguém faz tocar seu novo telefone. Você nem imagina ser aquela menina, amiga de um amigo seu, mas ainda meio distante.

Mas, o que ela quer uma hora dessas? Te convidar para sair. Nossa! Eu? Como ela conseguiu o telefone? Será que teve de perguntar a vários amigos? Será que descobriu meu sobrenome e procurou nas amarelas? Depois me lembrei que tinha mandado o telefone por e-mail para uma lista da qual ela participava. Não importa.

Ela parece interessante, come no RU, faz uns poemas de rimas pobres tão estranhos, e está sempre falando em cores e movimentos. O que será isto para a qual ela me convidou? Ela disse que é bem diferente, que eu iria gostar. Tem a ver com literatura e então ela convidou a mim, pois acha meu estilo de escrever (eu tenho isso?) muito interessante e promissor. Não me contou mais. Disse que também teria música eletrônica e umas drogas super novas que estavam entrando agora no Brasil. Nem sabia que ela era disso. Na verdade me decepcionei. Achava que suas estórias e seus devaneios fossem naturais, sem ajuda de psicotrópicos...Bom, também não tiremos conclusões precipitadas, ela pode usá-los apenas para festas.

Ah, será que tenho de usar roupas diferentes para essa tal festa?

-É uma rave Neide? (perguntei).

- Pode-se dizer que sim, continuou ela com o mistério. Quando estiver aí embaixo te ligo.

E o telefone ficou do lado da cama até ela ligar, lá pela uma da manhã. Eu achei que a coisa já tinha acabado e ela lembrou de mim voltando pra casa.

-Tô aqui embaixo. E lá fui eu lavar a cara e procurar algum café pra disfarçar o sono.

(Que festa estranha, começa na hora de acabar...).

Capítulo 2: A festa

O barco saiu de um lúgubre pântano, iluminado por grandes e finas tochas de madeira, que pareciam querer tocar um céu cheio de nuvens, mas ainda permitindo o vislumbre de uma lua minguante. Nenhuma estrela. Parecia que estávamos muito distantes de tudo e era só o começo da viagem. O barco que esperávamos ainda demoraria em chegar. Ao aportarmos, uma trilha ladeando um paredão encosto ao mar nos esperava. Aí sim, numa clareira iluminada por lasers e luz negra haveria esta reunião de humanos sui generis.

Onde estas pessoas se escondem? Elas andam de manhã, nas ruas? Pensei em comentar com Neide que eles pareciam ser vampiros e seriam ótimos personagens, poderia mesmo pela sua aparência dizer que poderes cada um teria, mas temi parecer muito nerd e ao invés disto apontei algo para mostrar meu bíceps trabalhado. Confesso que tive medo. As pessoas eram das mais estranhas reuniões de seres que já presenciei. Punks, hippies pós-modernos, cyber-mad-max-creatures e elfas estelares pareciam alguns deles. Só para começar.

No meio da viagem, um senhor alto, com muita olheira e cabelos negros, saiu da cabine do capitão (juro que não o tinha visto quando entrei no barco) com um vidro de colírio enorme nas mãos. Alguns expressaram largos sorrisos, outros se entreolharam assustados e eu olhei desesperado para Neide. Ela parecia também não saber do que se tratava, mas mesmo assim estava excitada com a idéia. O senhor veio direto a mim, parecendo sentir o meu medo. Falou com uma voz gutural, meio aconselhando e meio irônico:

-Pingue isto e todo este percurso se tornará como um sonho. Pratique a entrega total que não conseguiste dar à moça ao seu lado, mostrando que confia nela para voltar pra casa.

Minha nova amiga me olhou estranho, mas deu um sorriso meio descrente logo depois. Eu obviamente pinguei o tal alucinógeno. Em 5 minutos o céu parecia flutuar sob o barco e eu posso jurar que vi peixes voando.

A encosta pareceu um rochedo intransponível para mim, que ia sendo guiado por minha companheira de viagem. Já esta parecia bem confiante. Inquiri se ela não tinha pingado o colírio como todos, mas ela me assegurou que sim:

- Nasci voando! Ela gritava.

Por fim a clareira. O som ia forte e as batidas eram confundidas com hiatos e consoantes desprendidas de bocas loucas, soltas, e ao fim roucas de gritar. Cada batida parecia mais agonizante que a outra, não sei se gostava de tudo aquilo ou se ligava pra minha mãe e chorava. Foi a experiência mais estranha que tive. Quem não estava hipnotizado pelas letras se deixava levar pelo som, mais estonteante que as drogas. A música parecia a droga que mais me fazia efeito. Meus olhos reviravam, minha perna pulava, e todas as acrobacias absurdas que eu pensava serem aquelas danças eletrônicas pareciam agora inerentes a mim, como se meu corpo tivesse sempre pedido por isso e eu nunca o tivesse saciado. E nem todas as horas do mundo poderiam me fazer saciar por completo daquela mistura de barulho de videogame de adolescente com poesia de intelectual maluco beleza.

Eu e Neide, ou melhor, a Na, conversamos horas sobre tudo, e ela parecia me olhar tão interessada e flutuante em idéias e lascívia que quase arrisquei um beijo. Creio que o fiz, mas a fumaça do cachimbo me fez alcançar apenas a bochecha. Isto deve ter desanimado-a, pois ela logo saiu e beijou a quinta pessoa na festa. Não posso dizer se eram todos meninos. Na verdade algumas pessoas se pareciam com lagartos após 1 hora de efeito do “Cachimbo da Alice”, que nos ofereceram para entender melhor as declamações dos poemas surreais.

Capítulo 3: O 2o encontro

Estava ainda extasiado com o outro encontro, me perguntando se tudo era real ou se Neide era uma criação da minha cabeça, quando no fim de tarde do domingo ela me liga novamente. Super empolgada com um filme novo que estava passando. Eu fiquei mais excitado que ela, pois se fosse a metade do que foi a “rave” de sexta já seria ótimo. E dessa vez não haveria cachimbo que me impedisse de acertar o alvo.

Marcamos na frente do cinema, era uma sessão-maldita, começando 00:00. Segundo a Na isso era super raro de acontecer na cidade e não podíamos perder a oportunidade. Fiquei me perguntando se ela não teria outros amigos que compartilhassem do seu gosto, ou se ela estava interessada em mim para me convidar duas vezes no mesmo fim de semana para seus programas. Aquele quase beijo afinal poderia ter sido obra das coisas consumidas na festa (depois do efeito do cachimbo eu vi que realmente algumas bocas beijadas por ela pareciam não muito atraentes). Mas é óbvio ululante que fui ao encontro. Um cinema artesanal, montado num casarão quase abandonado.

(hum...num sei porque ele não comentou nada da outra festa...será que não gostou? Acho que ele é muito cabeça para festas, mas se bem que é isso que o torna interessante. Mas gostaria que ele comentasse mais sobre as coisas, como as poesias que eram declamadas, ao invés de ficar se exibindo só porque agora ta malhando...)

-Vamos entrar? (perguntei para a menina pensativa com olhar ao nada)

-Não Ale, aqui é a exibição, falou Na olhando ao redor.

A ante-sala do casarão parecia não agüentar por muito tempo toda aquela gente. Alguns pedaços do teto estavam faltando e as poucas cadeiras, todas ocupadas, preenchiam um chão que também tinha buracos enormes em seu desenho antigo. Vi que ao final da sala, à frente, o que pensava ser uma cortina para uma enorme janela era o pano da mis-em-scéne. Todas as velas foram apagadas e a cortina aberta. Eu e Neide nos sentamos no chão. Pipocas ou doces não eram permitidos e o frio de uma noite chuvosa entrava pelas frestas das janelas pendentes. Para minha surpresa as luzes do teto acenderam, e passados 10min alguma imagem apareceu na tela.

-Até que enfim, comentei.

-Pxxxxxi! Já tinha começado há 10 minutos! Neide lançou-me um olhar de reprovação, que também percebi em vários rostos ao redor.

Aquele filme devagar parecia ideal para que Neide me desse atenção e eu tentasse algo, mas ela estava muita absorta no homem que, mudo, dançava no mesmo cenário há 5minutos. Estava visivelmente emocionada. Notei esta mesma reação em várias pessoas e já estava começando a me sentir burro quando finalmente a cena mudou. No mesmo cenário, montado para imitar um planeta inóspito (muito mal feito por sinal), a câmera agora enfocava uma personagem feminina com cara de choro, que dançava amarrada à uma cadeira e tentava desesperadamente gritar, mas de seus lábios nenhum som saia. O primeiro bailarino, que só depois notei ser cego, juntou-se a tal mulher, e ela tentava desamarrá-lo de cordas que ele não tinha, pois prendiam somente a ela.

Todos esses atos encenados em câmera lenta e preto-e-branco estavam começando a me dar um sono enorme. Tentava ao máximo disfarça-lo, visto que meu objeto de desejo ali ao lado parecia estar gostando tanto e às vezes olhava pra mim:

-Está entendendo?

-Claro que sim, eu respondia. Ela me olhava deliciada:

-Não é lindo? No que eu apenas sorria. Uma dessas vezes eu tentei beija-la, mas alguém atrás chiou:

- Xiiiiiiiiii! Olhando sério para nós. E ela, envergonhada, se virou para a tela.

Agora os dois personagens saem de cena. E começa o monólogo sem frases do terceiro personagem, que alterava olhares de dor e desespero com outros de alegria e prazer. Foco em seu rosto. Nem o mais chato dos documentários ousaria tamanha monotonia. E aquilo se arrastava por horas.

Neide não mais me olhava, eu estava só. Um tédio enorme se abateu sobre mim, que já não agüentava mais olhar pra frente e tentava perceber as reações das pessoas. A única conclusão que cheguei era que eu realmente não pertencia àquele mundo, àqueles pseudo-intelectuais. Qual não foi minha dor ao notar que ela era um deles. Aposto que nenhum ali praticava exercícios. Estava com saudades dos meus amigos do Tae-Kwon-Do.

De uma hora pra outra a interessante garota virou uma chata sem tamanho. A mais chata que já conheci. Aquela menina da rave, toda liberal e descontraída era fruto das drogas e álcool. A verdadeira eu estava conhecendo agora, séria e retraída, dentro de um vestido preto que não se parecia nada com ela. E certamente com problemas mentais para achar agradável tamanho xarope que era aquele filme. Eu entrei num desespero maior que o personagem principal, tinha vontade de sair correndo, mas ela sempre pegava meu braço nessas horas, como se adivinhando das minhas intenções, mas com o rosto sereno.

Certa hora cheguei mesmo a baixar a cabeça e tentar gritar, mas como a personagem eu não conseguia mais extrair nenhum som de minha boca. Acho que algumas lágrimas escorreram dos meus olhos. Levantei-me e “a chata” as secou, mas o toque de sua mão agora me dava repulsa, e eu rapidamente me afastei. Ela me olhou assustada e eu esbocei um sorriso conciliador. Mas acho que já não conseguia fingir tão bem, adivinhei que meu falso riso pareceu mais uma careta.

3 horas depois do início, meu martírio teve fim. Todos se levantaram e aplaudiram de pé. De um salto eu já estava me virando para ir embora quando vejo que Neide não se mexeu.

-Vamos! Falei quase gritando, no máximo de minha tolerância.

-Como assim? Eu faço Comunicação, esqueceu? Quero ler e anotar quem foram os artistas desta obra prima.

Este pedantismo exacerbado quase me fez ter um troço. Mas o pouco de filosofia oriental que já li me ensinou a paciência como grande virtude e permaneci ao seu lado por mais 45 minutos de créditos.

Ao fim ela me convidou para um café, onde todos iriam comentar suas interpretações do filme. Eu recusei de pronto, e disse que tinha de ir pra casa, o que a causou muita estranheza.

-Você não gostou?

-Como? Achei uma experiência transcendentalmente maçante.

Ela sorriu encantada e me pegou pela mão.

-Então, vamos!

Eu novamente me afastei e disse que a ligaria qualquer dia, quase correndo em direção ao Terminal.

No outro dia ela me ligou, perguntando porque eu não tinha ido almoçar no RU. Das outras vezes eu não mais a atendi e sempre evitava passar por ela na universidade.

P.S: Conto também antigo, encomendado por um amigo =)

desafinada
Enviado por desafinada em 09/02/2007
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