A Mosca - A Trajetória do Terror

No velório a mosca tentava a todo custo sorver as substâncias decorrentes da morte do velado. Fazia vôos rasantes entre o rosto. Pousava na testa, mas logo, alheia aos presentes vivos, dava preferência em ficar entre os lábios arroxeados e as fendas das narinas. Talvez, nada dali sugasse, mas o cheiro lhe fosse atraente. O morto tinha gofado sangue e expelido pelas narinas antes de sua morte. Ao movimento brusco da tampa do caixão, ao ser dirigida por alguém, pois , estava na hora do enterro, a mosca vôo, foi-se, não assistiria o descer para a cova do caixão.

levada pelo vento dirigiu-se para um terreno baldio, ainda no cemitério, e ali, pousou em ossos de esqueleto humano que estavam espalhados pelo solo - em cemitério de pobre não se respeita os mortos. Os ossos pareciam cauterizados pelos constantes banhos de sol - a mosca adentrou pelas cavidades oculares da caveira, ficou por alguns segundos, talvez, em busca de alguma matéria em putrefação. Logo saiu e vôo.

Ao chegar ao lado do cemitério foi atraída pelos odores que expiravam do boteco. Entrou, dirigiu-se, imperceptível para o imundo sanitário. Fezes e urina decoravam o vaso sanitário. A mosca desfilou pelas bordas da louça encardida, pousou no seu interior, e sem temer a morte na urina fétida, pousou num imenso e asqueroso toloco que boiava na urina. Longos foram os seus minutos ali, até que mais uma vez ganhou novo destino. Estava ficando presa na merda, sentiu o perigo. Saiu para a rua, pois, os quibes, coxas de galinha,linguiça de porco e demais tiragostos estavam protegidos na estufa de vidro sujo e rachado daquele boteco sombrio da rua do cemitério.

Havia um escarro esverdeado na calçada, e ali pousou. Parecia adorar emporcalhar as suas patas no sujo e sugar o que não prestava ás vistas dos humanos. Alçoou vôo mais uma vez, poucos metros depois, estava entre uma imensa carga de coco de gato, ou seria de cachorro na grama de uma casa bonita, com piscina, jardim e muros altos - para a mosca não tem obstáculos, a todo lugar se vai, entra sem pedir licença.

Na casa, na cozinha, ali na mesa bem decorada, a mosca pousou no farto almoço descoberto que estava à mesa, enquanto a família reunida estava na piscina se divertindo naquele ensolarado domingo.

Pousou no arroz, logo foi para a picanha suculenta, com prudência, assim como não quis se afogar na urina, não queria ficar presa no óleo. Mudou para o arroz, como se fosse uma inspetora, agora de alimentos.

Até mesmo na farta salada desfilou, alçou vôo e ficou na beirada dos copos de sucos - sorvia o que restara de sabor e de saliva do humano que ali bebeu.

Depois que a mosca foi embora, a família retornou da piscina. Comeram pra valer e tomaram todo o suco, antes porém, num vacilo, a mosca tinha se aventurado na jarra de suco de manga, chocando-se com a parede de vidro, caiu no suco, e ali estava prestes a morrer afogada, quando a providência da cozinheira a acudiu:

- Tem uma mosca dentro da jarra do suco de manga...

- Ora, tire a mosca e bote pra ca, vamos beber.

Disse o chefe de família, com arrogância, e sem conhecer a trajetória de uma mosca dos muitos pontos da cidade até a sua residência.

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 13/09/2012
Reeditado em 07/11/2012
Código do texto: T3880243
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