Com os pés na senzala

Nasci mulato. Filho de pai descendente de italianos e mãe cafuza. Diziam meus antepassados que a minha tataravó materna, que não a conheci, era índia e foi pegada nas matas a dentes de cachorro. Não se tem comprovação desse fato histórico, mas, minha avó recentemente falecida, aos 106 anos, possuía fortes traços aborígines. Já o meu avô materno era crioulo. Percebe-se que da minha mãe herdei estas características afrodescendentes. Posso dizer que estou com os pés na senzala. Aliás, quando falo isto para os meus filhos eles retrucam dizendo que estou com o corpo todo. Só porque sou pardo e possuo cabelos encarapinhados. Maldade deles! Por culpa dessa miscigenação certa vez sofri na pele um incômodo constrangimento. No ano de 1960, aos treze anos incompletos, acompanhei a tia Firmina até a cidade do Salvador, onde atualmente resido. Chegamos durante o carnaval. Assistimos aos desfiles de blocos, afoxés, carros alegóricos e até de escolas de samba que, nessa época, ainda existiam. Andamos por suas ruas estreitas, becos, e conhecemos algumas de suas belas praias. Tudo eram novidades e encantamento para um garoto que nasceu numa acanhada vila, e, de onde nunca havia saído para uma cidade grande. Logo me apaixonei pela cidade. Foi um caso de amor à primeira vista.

A nossa estadia soteropolitana transcorria a mil maravilhas, até o dia que resolvemos visitar o proprietário da fazenda que papai gerenciava. Ele morava no bairro da Fazenda Garcia. Custou-nos um bom desgaste nas solas dos sapatos, mas localizamos a sua casa. Tocamos a companhia e a empregada veio abrir a porta. Após tia Firmina declinar seu nome para a doméstica, esta retornou ao interior da residência para anunciar a nossa presença ao senhor Vespasiano, seu patrão. Segundos depois um senhor de estatura mediana, meio rechonchudo, alvo e careca, veio ao nosso encontro cheio de amabilidades com a tia Firmina, de quem era parente em terceiro grau. Ele franqueou a nossa entrada e nos mandou sentar num sofá da sala de estar, aboletando-se em seguida ao nosso lado. Seguiu-se, a partir desse momento, uma animada prosa, desta feita, já com a presença de dona Lili, sua esposa, senhora de boa estatura, grisalha e muito vistosa. Falaram de muitos assuntos que, na minha tenra idade, não me era dado o direito de participar.

Como não havia outras crianças na casa, aquele falatório tornou-se, para mim, um tédio. Uma verdadeira tortura. E se tornou mais entediante ainda quando, no decorrer do proseado o rechonchudo senhor inquiriu, mais uma vez a tia Firmina:

- Firmina por que você não trouxe o “gazinho”?

O “gazinho” era o mano Dado, que, quando pequeno tinha os cabelos meio aloirados, fruto da já descrita descendência italiana do meu genitor. Confesso que esse infeliz comentário me deixou arrasado. Apossou-se de mim uma imensa vontade de cavar um buraco e enfiar a cara dentro. Ou melhor, a cara do rechonchudo.

Onde já se viu constranger uma criança dessa forma tão contundente?

Ah, se fosse hoje...! Esse rechonchudo senhor não ficaria impune.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 11/10/2012
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