Branca de Febre

Tudo começou com aquele maldito convite para a festa. Ora, eu detesto festas! Realmente não sei por que foi que aceitei participar da festa da colega mais rica da turma.

Acho que foi porque a mãe dela insistiu. Era uma senhora bastante distinta, se vestia superbem, com elegância e roupas de marca. Tinha um nariz um pouco grande, com uma verruguinha do lado. Mas quem falava com ela nem percebia isso, pois sua conversa envolvente e persuasiva hipnotizava qualquer um. Assim, aceitei porque ela insistiu, polida e educadamente, como convém a uma família de fazendeiros do interior do Rio Grande.

Para conseguir um traje adequado, recorri a uma excelente costureira, que conseguiu fazer mágica com um vestido velho de uma prima. Durante as sessões de prova da roupa, contei para ela minha apreensão quanto a participar de um evento aristocrático sendo eu apenas uma guriazinha-classe-média. Ao terminar os últimos ajustes do tal vestido, ela falou que eu estava linda! E me disse palavras tranquilizadoras e ainda aconselhou a ter cuidado com comidas e bebidas dos grã-finos, especialmente coisas doces.

A festa em si não foi tão ruim quanto eu imaginava. Até foi legal. Várias pessoas daquela sociedade me disseram que eu estava muito linda naquele vestido. Algumas pessoas também disseram isso para minha colega. A mãe dela ficou cuidando isso, nos observando de perto, do início ao fim do evento. Fora isso, tudo estava até divertido. Depois do fim da festa, eu e a colega estávamos até cansadas de tanto dançar. Trocamos a roupa de festa por abrigos confortáveis, e estávamos saindo do salão, quando a mãe da colega foi supergentefina e trouxe para ela uma coca-cola e para mim uma bebida que ela chamou pomposamente de Earl Grey Tea, mas que tinha um jeito de ser uma coisa assim entre um chá de maçã e uma poção mágica, e ela insistiu:

– Sei que tu não gosta de refri, então toma isto, vai te fazer bem. Está bem docinho.

Eu tomei o chazinho, estava bem docinho mesmo, tri bom. Depois, fui para casa.

Passado um tempinho, eu já estava na rodoviária para pegar o ônibus de volta, pensando no conforto dos bancos e no descanso que eu teria ao tirar uma soneca durante a viagem. Foi nesse momento que comecei a sentir uma pontinha de dor de cabeça... depois, uma sensação de frio e calor aleatoriamente alternados, e para completar, um começo de dorzinha de barriga, que foi aumentando. Inicialmente pensei:

– Ah, não deve ser nada. Eu durmo um pouco, depois vou ao banheiro, e tudo passa.

Olhei para o ônibus e percebi que ele... não tinha banheiro! Aí bateu um pavor:

– Ai... Com dor de barriga e sem banheiro no ônibus, acho que não vai ser bom...

Eu olhava para o ônibus, e agora ele começava a me parecer um lugar perigoso. Considerei a opção de permanecer na rodoviária e tomar o próximo ônibus. Perguntei para um atendente:

– Moço, qual é o próximo horário desta linha?

– É daqui a quatro horas. Moça, a senhora está branca, pálida... Algum problema?

– Não, não, tudo bem. – Mas pensei: – Ai... Agora vou ter que encarar!

Então encarei. Entrei no ônibus, encontrei meu assento, me acomodei e tentei ficar calma. À medida que o ônibus andava, foquei minha atenção no barulho do motor, e tentei dormir com aquele ronronado... Mas minha barriga fazia concorrência com seu barulho de “tripas trabalhando”... Algo como brlglrblrglrbrlglrb... horrível e assustador, especialmente por dar uma ideia de antecipação do que estaria por vir.

Até aquele momento, eu poderia dizer que estava tudo mais ou menos sob controle. Mas aí começou a chover.

A água da chuva batia na janela e escorria pelo vidro. Seria bonito de ver, se não fosse um efeito colateral desse fenômeno. O barulhinho de água correndo, como qualquer criança sabe, é um excelente incentivador do funcionamento do sistema urinário, e às vezes também do sistema excretor. Era tudo que eu NÃO precisava.

Eu tentava me concentrar, tentava meditar, tentava pensar em qualquer outra coisa, menos na chuva, na dor de cabeça, no calafrio e na maldita dor de barriga. Acho que eu estava ficando pálida mesmo, pois acabei chamando a atenção de outros passageiros.

Nos bancos próximos ao meu, na frente, atrás, ao lado e do outro lado, encontrei umas sete gurias, muito muito altas. Acho que eram um time de vôlei ou basquete. (Não sei o que estavam fazendo naquele ônibus naquele horário, mas não perguntei, até porque não estava em condições de me preocupar com isso.) Uma delas me perguntou:

– Oi, tá tudo bem contigo? Tu tá bem branquinha. Precisa de alguma coisa?

– Eu... to me sentindo meio mal... da barriga. Mas acho que já vai passar.

Mas não passou, e na verdade piorou cada vez mais. A sensação de tontura, calafrio e, pior, a sensação de algo mole tentando sair do tubo digestivo, tudo isso era apavorante! Acho que eu precisava era de um médico, um enfermeiro, um farmacêutico, alguém, sei lá.

Aquela ideia inicial, de adotar a estratégia de dormir para ver se tudo passa, tornou se então impraticável. Ficou muito claro para mim que, se eu dormisse, se eu relaxasse um pouquinho só que fosse, algo de muito ruim – e também muito malcheiroso –iria começar a se materializar escorregadiamente no espaço exterior.

Portanto, era impossível dormir. Precisei me manter sob tensão constante. Precisava conservar rígidos e contraídos todos os músculos do meu corpo. E, nesse caso, com especial atenção aos esfíncteres, que todo mundo conhece como “os músculos do medo”! E que baita medo eu sentia! Um medão terrível de que a coisa toda começasse a desandar...

E começou. Oh, que sensação medonha! Era um pouquinho só, mas constatei que todo o esforço de concentração que eu estava empregando com dificuldade até aquela hora, até me torcendo e retorcendo, não estava funcionando. E isso já foi o bastante para que eu abandonasse os últimos fios restantes de esperança de controlar aquela degradante situação.

Tudo aquilo já estava sendo horrível, e então me peguei imaginando o que estavam passando os demais passageiros. Eles não sabiam de nada do que estava acontecendo e só sentiam um cheirão horroroso e nauseabundo. Que suplício havia de ser para todos eles!

Uma das sete gurias do vôlei se aproximou de mim gentilmente, e perguntou:

– Será que tu comeu alguma coisa que te fez mal? Tem que cuidar muito isso, a alimentação, o que a gente come, especialmente os doces.

Lembrei instantaneamente das sábias palavras da costureira conselheira.

– Pois é, alguém já me disse isso. Acho que foi alguma coisa que eu comi, ou bebi.

O cheiro maldito não só empesteava todo o ambiente, atingindo as sete gurias que estavam próximas e todos os demais passageiros, mesmo os que estavam mais longe. O fedorão também, junto com o ruído da chuva, estimulava o meu organismo a liberar, pouco a pouco, mais e mais material. E piorava também a dor de cabeça.

Não havia o que fazer. As coisas estavam se soltando sem obedecer aos meus comandos de “fiquem exatamente aí onde estão”. Todas as minhas tentativas de controle se foram por água abaixo. (Nesse caso, talvez se deva dizer “por ‘outra matéria’ abaixo”.)

Em certo momento, creio que a pestilência estava tão intensamente perturbadora para todo mundo, que as gurias do time de vôlei tomaram uma atitude. Elas se reuniram no corredor do ônibus, juntando suas cabeças e se abraçando umas às outras em uma forma de biombo humano. Confabularam por um tempo e saíram da sua reunião decididas:

– Vamos ver se tem algum médico dentro do ônibus e também vamos pedir para o motorista parar no primeiro posto de gasolina que ele encontrar nesta estrada. Lá deve existir algum banheiro que esteja em condições de uso.

– Bah, gurias, muito obrigada! Acho que isso vai resolver tudo.

Perguntaram a todos no ônibus, mas, pra meu azar, ninguém ali era médico, nem enfermeiro, nem nada de útil. (Que ideia a minha de esperar encontrar uma salvação desse jeito, como se fosse mágica.) Então foram falar com o motorista. Depois de um tempão acompanhando à distância a argumentação delas, pude finalmente ver um movimento de cabeça dele como quem assente ao pedido. Pensei: “Ufa!” Aquela notícia naquele momento trouxe um grande alívio e muita esperança. Contrariando todas as probabilidades que eu imaginava que existiam, minhas novas recém-encontradas amigas conseguiram uma oportunidade de ouro para resolver o meu gravíssimo problema daquele momento.

Quando o ônibus finalmente estacionou junto a um posto de gasolina, corri direto para o “Elas”. Chegando lá, vi que as instalações não eram nada boas. De fato, era o retrato da sujeira: lixeira transbordando, torneiras vazando, metais enferrujados, vaso sem assento, um cheiro abominável e, claro, nem sinal de papel higiênico. Contudo, nas condições em que eu me encontrava, isso não tinha importância. Aquilo era um banheiro e era tudo o que eu precisava no momento. Estava mais do que bom.

Fiz uso do sanitário com muita propriedade, despejando nele algo que me pareceu quilos e quilos das coisas que estavam se processando em meu organismo e já tinham iniciado inadvertidamente seu irretornável caminho de saída. Um grande alívio foi o que eu senti naqueles breves minutinhos em que atrasei a viagem dos demais passageiros.

Tinha certeza de que agora as coisas estariam resolvidas. O material que queria se ver livre de mim chegou ao seu objetivo, e eu, que queria me ver livre do material de uma vez por todas, também. Quando saí do banheiro podrão e respirei o ar puro da noite chuvosa, o contraste entre as atmosferas dos dois ambientes era tão impressionante, que imaginei estar sentindo o cheirinho de eucalipto do banheiro lá de casa. Tudo o que eu queria era estar lá, na tranquilidade do lar, podendo utilizar as minhas próprias instalações sanitárias, sempre limpinhas e bem cuidadas. Tudo parecia em paz naquele momento.

Caminhei rapidamente em direção ao ônibus, para não atrasar mais ainda a viagem, certa de que tinha resolvido tudo. Ao embarcar no veículo, senti uma contração involuntária na região dos intestinos e percebi desgraçadamente que ia começar tudo de novo.

Aí surgiu o desespero. Não podia suportar a ideia de que iria sofrer mais ainda com aquela situação. Não podia ser. Eu já tinha resolvido. Precisava acreditar nisso.

Então uma luz surgiu em minha mente. Lembrei que o posto de gasolina poderia ter uma loja de conveniência, e a loja talvez vendesse fraldas. Fraldas geriátricas, sim, essa seria a solução, pelo menos por pouco tempo até o fim da viagem, até chegar em casa.

Mas eu não tinha condições de caminhar de volta até a loja do posto sem desencadear novamente o processo. Apenas gemi para as minhas novas sete amigas:

– Parece que vai começar tudo de novo...

Todas elas arregalaram os olhos de susto, mas também como quem teve uma ótima ideia. E então sussuraram juntas, como que inspiradas por uma conselheira oculta:

– Fraldas geriátricas! – e uma delas foi correndo até a loja do posto.

Eu me dirigi calmamente para o meu assento, tanto quanto era possível andar com calma e com os músculos contraídos ao mesmo tempo. Antes de me sentar, apenas fiquei aguardando o retorno da guria com o tesouro que resolveria todos os meus problemas.

Pouco depois, ela chegou, mas não trazia nada nas mãos, e apenas disse:

– Estão em falta. – Oh, não! – E ali também não tem nenhum médico.

Aí minha esperança desandou. E a tensão de meu organismo literalmente se afrouxou, e mais alguma coisa também desandou. Só consegui me sentar no banco (melhor dizendo, despencar no assento), abandonando completamente alguma tentativa adicional de controlar os músculos.

Claro que nesse momento as coisas pioraram sensivelmente. Aliás, muito sensivelmente, pois pude sentir inclusive a consistência do problema. Eu caí em uma terrível aflição, uma aflição bastante pegajosa. Isso me causava uma sensação avassaladora de desamparo, eus sentia como se fosse um náufrago sem ajuda em um oceano interminável (no caso, num oceano interminável de... bem, disso que nós estamos falando).

Permaneci por muito tempo sentindo aquela desorientação da desesperança, apenas acompanhando os pingos de chuva no vidro.

E então de repente meu celular tocou. Era a mãe da minha colega, querendo saber:

– Queriiiida, está tudo bem com você? Ai, eu achei que... eu tive um, sabe?, um pressentimento! de que você não estaria bem agora.

– Não... ta tudo bem sim. Obrigada pela preocupação.

– Mas tem certeeeeza de que está bem mesmo? Eu tinha quase certeza de que... eu achei que você estaria passando mal a esta hora.

– Não... ta tudo bem sim. Obrigada. – Mas pensei: “Como é que ela sabe?”

Ainda estava com dor de cabeça, além de tudo o mais, e não conseguia raciocinar direito. Aí surgiu na rodovia uma placa de trânsito dizendo “Bem-vindo a Porto Alegre”.

Nesse momento, minhas esperanças timidamente se recompuseram, e eu comecei a tentar me acalmar ao repetir mentalmente um mantra: “Já vamos chegar em casa! Já vamos chegar em casa!” E, de alguma forma, parecia que a essa determinação começou a fazer algum efeito em termos de controle do organismo. As coisas se aquietaram, pelo menos por um tempo. Até mesmo a chuva cessou quando chegamos à cidade.

Ainda haveria um desafio a ser superado: eu precisava me deslocar da rodoviária de Porto Alegre até a minha casa. Seria preciso tomar mais uma condução, e eu realmente não queria empestear outro veículo. Enquanto eu me debatia considerando em antecipação os dramas de mais esse problema, o ônibus chegou ao seu destino. E tive uma surpresa encantadora: minha conselheira estava lá na rodoviária aguardando o ônibus. Fiquei feliz!

Desembarquei com dificuldades, tentando ainda manter todas as coisas sob controle. Conversando com ela e com as sete gurias do vôlei, descobri que ela era a responsável pelos uniformes do time, e por isso tinha ido recebê-las. Mas eu senti como se ela tivesse ido me resgatar, exclusivamente a mim, para me livrar do suplício pelo qual eu passava.

Todas prontamente se ocuparam do meu caso e imediatamente sugeriram que eu pegasse uma carona com elas na sua van, garantindo que eu não deveria me preocupar com a situação, nem com o cheiro, nem com alguma sujeira que fizesse no carro, apenas ficasse calma, que elas iriam me levar direto até a minha casa rapidamente.

De fato, foi tudo bem rapidinho. Quando vi, estávamos diante da minha casa, e elas faziam questão de permanecer junto comigo até que eu me sentisse bem novamente.

Assim que consegui desembarcar da van, comecei o processo de tentar encaixar a chave na fechadura de casa. (Não pude deixar de refletir sobre o fenômeno que ocorre toda vez que uma pessoa precisa ir ao banheiro e está prestes a entrar em sua casa, colocando a chave na porta. Sempre parece que o organismo adivinha que já está em casa e que pode se libertar. Nunca entendi esse malfuncionamento do corpo humano. E agora isso parecia a cereja do bolo no contexto do meu drama.)

Finalmente consegui entrar e disparei para o lugar mais nobre da casa. Consegui me instalar no trono e desfrutei da glória e do poder de me sentir livre novamente. Todo o alívio que eu havia sentido no posto de gasolina era quase nada perto do imenso e absoluto alívio que eu sentia agora, no meu próprio lar, no meu banheiro limpinho, bem cuidado e cheirando a eucalipto.

Eu sentia que poderia ficar ali todo o tempo que o meu organismo exigisse, e ficaria mesmo, tranquilamente, tomando o soro caseiro que minhas amigas prepararam para mim, curtindo o conforto do assento fofinho, ouvindo o agora agradável som da chuva que voltava a cair, e até acionando o aromatizador sempre que eu quisesse, sem ninguém sendo prejudicado por um odor nauseante.

As minhas novas amigas ficaram na sala vendo tevê. Já tinham até ligado para um serviço médico de emergência, que disse que estava a caminho. Elas ficaram pacientemente aguardando para me ajudar até o desfecho do meu drama.

Minhas calças e roupa de baixo foram apenas jogadas para um lado. Seu caso seria julgado depois, se seriam lavadas ou se, caso essa alternativa se mostrasse impraticável, seriam jogadas diretamente no lixo. Mas essa era apenas mais uma decisão a tomar, não representava nenhuma preocupação, perto do que eu estava experimentando no momento.

Eu agora me sentia tão tranquila e tão poderosamente dona da situação, que, dali do meu magnífico troninho, até esnobei a tragédia e acionei a torneira da pia, para que o barulhinho da água correndo incentivasse ainda mais o organismo a se libertar de tudo de ruim que ele tinha ingerido.

Minhas amigas me contaram depois que a senhora atendeu uma ligação no meu celular: era a mãe da minha colega, novamente insistindo em saber se eu estava mal. Foi muito inusitado quando as duas perceberam que se conheciam desde a adolescência. A minha amiga então passou um grande sermão na outra, lembrando a ela que deveria deixar de ser tão invejosa como sempre foi. Em vez disso, deveria ajudar as pessoas com os seus vários talentos. Nós todas torcemos para que a dica tenha funcionado.

O médico do serviço de emergência demorou um século para chegar em seu cavalo branco, digo, na ambulância. Não pude deixar de considerar que ele era muito bonitão, e que talvez eu pudesse propor que um beijo de amor quebraria o feitiço malévolo... Mas também refleti que, se eu tivesse ficado esperando por ele para resolver meu problema, teria me dado mal. Nesse momento eu já estava recuperada e tranquila, conversando e rindo da tragédia com as minhas novas amigas. Agradecemos e dispensamos o atendimento médico.

E aprendi a não tomar mais nenhum chá de maçã metido a besta, mesmo que – e principalmente se – tiver sido fortemente sugerido por alguém rico e metido a besta.