O dia em que lhe deram a notícia

O mundo já não era o mesmo ao seu redor. Aos poucos, tudo o que antes lhe dava prazer diante da sensação de objetivo cumprido, produto final do seu esforço, cócegas não lembravam. Era com essa realidade morna que ela teria que se acostumar, que conviver. Sempre que sua produção “virasse”, assim mesmo de uma hora para outra, seu cérebro intrigante devolveria a certeza de que é, apenas, uma fase, parte sintomática de um quadro anômalo de funcionamento. Cuidados deverão ser tomados nesse sentido, como, por exemplo, o uso de medicamentos que, limitadamente, têm o papel de “muletas”. Tudo, é claro, com o devido controle e acompanhamento de profissional capacitado.

Artur, o mais experiente na área, foi ao seu encontro. Interrogou largamente sobre assuntos variados, ao que ela respondia com acenos de cabeça e grunhidos vacilantes. Nada se pôde descobrir nesse primeiro dia, mas havia uma certeza: talvez não lhe fosse mais possível falar. Artur saiu ao cabo de mais de uma hora do que se esperava ser conversa e não passou de monólogo. Desapontados, o chefe concedeu uma semana de férias, seguindo os conselhos de Artur.

Os demais funcionários, com suas maletas, acompanharam o rapaz até a porta. Foi possível, mesmo para quem estava longe, notar nas feições um ar que não se saberia de desdém ou preocupação nebulosa. Ela estava calada há mais de uma semana; simplesmente deixaram de ouvir o seu tacão sobre as pedras do piso, tão agradável e familiar. Era a número um em testar componentes novos, dizer o que não presta e o que seria facilmente assimilado. Se fosse uma gerente de RH, se diria perfeita.

Todos foram inquiridos sobre o que travaram com ela no momento final, mas ninguém se lembrava com certeza. Suas passadas eram tão rápidas, jogava tanto de si para a linha de montagem, estava sempre tão absorta em pensamentos sobre um mundo de sonhos fabris pré-moldados, desde as plantas até os pés, que seu rosto havia passado mesmo despercebido. Agora, ao contrário, eles a olhavam com curiosidade, alguns até com dó. Natural que a maioria sentisse despeito, estamos falando de uma “roubadora de maridos”.

Sua produção corriqueira, calculada em mais de tantos mil, se otimizava com doses de economia. O ponto alto que a fazia diferente das demais estava em ler tudo o que passava pelas suas mãos. Meticulosamente. Até o fatídico dia em que, aproximadamente às 13h15, quando foi encontrada, ela cessou seus afazeres, seus papéis, seu lucro e seus acenos de relance. Parecia esvaziada até o talo.

Depois de três dias de repouso e consulta, deram-lhe a notícia do seu estado. Ela ouviu, pois, atentamente, com os olhos vidrados no chão. Ninguém queria perdê-la, seria melhor ir evoluindo aos poucos, tateando os cantos escuros e tortos que precisavam de luz. Chafurdando o interior com uma agulha de sutura, mesmo que isso a levasse ao vício. Ela parecia conformada.

Quando Artur veio, depois de outro encontro e entre lágrimas besuntadas, disse ao chefe que ela, finalmente, poderia voltar ao trabalho. Com menos ritmo que antes, que fique claro (como ele disse “inflexões” seriam necessárias), mas o prejuízo total estava descartado. Mexendo continuamente na maleta, entregou um papel ao chefe, que leu e fez careta. Foi embora: ela e Artur nunca mais estariam frente a frente.

Cerca de uma semana após o caso da máquina dos livros, o chão de fábrica entrou em ebulição. Correu a notícia da morte do Artur. Recearam que o assunto a atingisse, entretanto, de ouvidos límpidos e senso crítico afinado, sabendo do acontecido, resignou-se a continuar.

Falou-se pouco do Artur; foi enterrado numa cova familiar em agosto, pouca gente da gráfica compareceu ao funeral, disseram que uma moça do café tentou o suicídio. O chefe mandou uma coroa de flores e condolências ao morto e à viúva, respectivamente. Em dezembro, quase perto do Natal, alguém se lembrou do Artur, e então lamentaram muito a sua partida. Entre porcas e parafusos, isolantes e operários, ela não respirava mais. Espantoso, parecia toda apodrecida por dentro.