Cíclico

Férias de julho, eu tinha ido visitar parentes em um vilarejo distante. Logo no primeiro dia, caminhando a esmo pelo lugar, encontrei-me em um descampado, onde pessoas preparavam uma festa, talvez uma quermesse, para logo mais à noite. Moças e rapazes estavam ocupados preparando barracas, petiscos, enfeites e bebidas. Fui atraído para uma mesa, onde uma mocinha de lindos olhos azuis preparava caipirinhas. Suas mãos delicadas espremiam limões em uma jarra.

- Vai estragar suas mãos com o sumo do limão. – disse eu, para iniciar uma conversa.

- Não tem problema, depois eu cuido delas. Quem é você? Nunca te vi por aqui.

- Cheguei hoje, vim passar uns dias na casa de minha tia.

- Então fique com isso de lembrança. – e me ofereceu três semente de limão, ainda úmidas. Ela os colocou sobre a palma da minha mão estendida, e pousou suavemente a mão dela sobre a minha. Senti um calor invadindo meu corpo e olhei para seu rosto. Ela sorria, um sorriso espontâneo e inocente. Depois retirou a mão, e continuou sorrindo. Sem saber o que fazer, acabei guardando as sementes no bolso, enquanto observava aquela menina trabalhando.

- Ei, você está bulindo com minha irmã? – alguém perguntou atrás de mim.

Virei-me. Um rapaz grandalhão me olhava, sério. Parecia já meio dominado pela bebida. Antes que eu pudesse responder, mais três rapazes apareceram e me cercaram. A menina olhava aflita.

- Vamos dar uma lição nele? – perguntou um deles.

- Que tal uma coça? – propôs outro.

- Parem com isso, e vão terminar de montar as barracas! – gritou a menina.

O grandalhão me empurrou. Dei uns passos cambaleantes para trás.

- Vá embora! – ordenou.

- É melhor você ir, – disse a menina, preocupada – eles estão meio altos. Volte à noite para a festa.

Fui. Resolvi andar um pouco mais em direção contrária ao vilarejo, para aliviar a chateação. Era uma área de mata, mais ou menos densa. Quando estava uns cem metros distante do descampado, vi os quatro rapazes vindo em minha direção, correndo. Traziam varas nas mãos. Aborrecido, decidi não esperar para ver o que ia acontecer, e comecei a correr. Logo adiante havia uma trilha que levava à mata, e adentrei por ela. Talvez conseguisse despistá-los.

Não deu certo, eles vieram logo atrás de mim. Parecia conhecerem muito bem aquele lugar. Por fim me cercaram numa pedreira abandonada, e me fustigavam com as varas, enquanto diziam bravatas. Eles se divertiam às minhas custas, e creio que teria ficado nisto, porém um deles tirou um canivete do bolso e me ameaçou.

- Pára com isso! – falou o grandalhão. – É perigoso. Vamos, acabou a brincadeira. Vamos embora.

O rapaz do canivete queria mais, e num gesto rápido, passou a lâmina em minha camisa, cortando-a e riscando minha pele. O sangue logo encharcou o tecido.

Vendo aquilo, o grandalhão dominou o rapaz e tirou-lhe o canivete das mãos.

- Estúpido! Olha o que você fez! Era pra ser só brincadeira!

Doía, e aos poucos fui andando para trás, me afastando deles. Não sabia o que dizer. A situação tornara-se extremamente embaraçosa.

Até que, num passo desajeitado, enrosquei meus pés em uma raiz e caí para trás. Houve um desagradável ruído quando minha cabeça acertou a quina de uma pedra. Dor e confusão, milhares de estrelas brilhantes piscavam à minha volta. Percebi quando o grandalhão aproximou-se de mim e me tocou. Em seus olhos vi o medo. Instantes depois o pavor tomou conta de todos e saíram dali correndo.

Estava ali deitado, olhos abertos fitando o azul do céu entre as folhas das árvores. Eles iam aos poucos perdendo o brilho. Então sentei-me em outra pedra e observei meu corpo. Continuava deitado, do mesmo jeito. E veio a noite e o dia. E outra noite e outro dia, e mais ainda. Minha pele escureceu, animais de vez em quando levavam pedaços dela. Eu, sentado na pedra observava.

Meu corpo inchou, e dele emergiram milhares de bichinhos brancos, com minúsculos olhinhos negros. Eram tão alvos que lembravam carneirinhos em miniatura. E viraram moscas azuis e moscas verdes.

Surgiram besouros furta-cor e vespas, e aos poucos a pele e as entranhas foram desaparecendo, virando terra. A roupa rota rasgou-se, deixando cair as três sementes de limão ao chão. De uma delas brotou uma plantinha, tornou-se um pequeno limoeiro.

E veio a primavera, eu sentado ali na pedra observava em volta dos restos do corpo surgirem dezenas de flores coloridas. Tudo ali era uma profusão de vida. Abelhas e beija-flores zuniam para lá e para cá. E havia o canto dos pássaros e as borboletas azuis. Lembrei-me das conversas sobre o fim do mundo naquele ano, mas não parecia que o mundo queria se acabar. Estava cada vez mais vivo.

Eu sentado na pedra observava. E vinham os dias e iam os dias. Vinha a chuva e vinha o sol.

Até que um dia alguém esteve ali e viu os restos do corpo. Apavorado, saiu correndo. Depois mais pessoas vieram, e mais. Enfim levaram aqueles restos numa caixa. Eles já não eram eu, eram apenas restos, e em breve à terra tornariam, e dela fariam parte.

Finalmente levantei-me da pedra onde estava sentado. Ajoelhei-me junto ao limoeiro e acariciei suas folhas perfumadas. Estava livre para vagar pelo mundo, para acompanhar o voo indeciso das borboletas azuis. Podia seguir as andorinhas que faziam piruetas no ar para pegar siriris, e voar entre as nuvens, e ir muito acima delas. Fui cada vez mais longe, até ver como o mundo se parecia com os lindos olhos azuis da menina da festa. O mundo estava brilhante e não havia acabado, como diziam as previsões, continuava no seu lugar, impassível. Eu olhava para ele como se olhasse para as bolinhas de gude que tinha quando criança. Mesmo mistério, mesmo encantamento.

Estou agora muito além do horizonte, onde encontrei a paz. Ela é cheia de ternura e doce como o sorriso de uma menininha. Tão suave aconchegante quanto uma canção de ninar, um colo de mãe. Reconfortante como a escuridão benfazeja e o silêncio dentro de um útero, a essência da paz.

Fecho os olhos e me torno…

… Paz.