O Manuel das Invenções

O Manuel das Invenções

O Manuel sempre fora curioso e empreendedor. Conta-se que, catraio ainda, uma vez o viram a desenterrar um pé de fava grelado e que, pleno de convicção, numa das leiras ao lado, escavou com os dedos até encontrar uma mirrada bolinha de ervilha. Seccionou ao meio ambas as sementes e entrelaçou-as, fava e ervilha, acabando por cobrir de terra o enxerto, esfregando de contente as mãos, sujas da terra argilosa e barrenta, acabado o plantio.

Nos dias e meses que se seguiram quem procurasse o pequeno ou quisesse sabem para onde se havia ele escapulido, bastava procurar o Manuel ao fundo do quintal, junto dos carreiros do ervilhal, a crescerem e a medrarem fortes, tal como ao lado, nas leiras vizinhas, gradava viçoso o faval.

Só do pequeno montículo de terra que ele tinha ajeitado para cobrir o seu plantio é que nada; uma erva daninha de quando em vez lá espreitava, medrosa e descarada, da terra humedecida pelas chuvas ou, na falta destas, pela rega. Mas era prontamente arrancada para não enfraquecer a gleba de onde, ainda com uma réstia de inquebrantável esperança, mas cada vez mais com o sabor desgostoso do desalento, esperava poder ver surgir um carinhoso sorriso do solo a abençoar a sua obra-prima da manipulação leguminosa: “A ervilhava”.

Cansado de tanto olhar para baixo e não ver nada a não ser a terra a ressequir enquanto em volta as ervilhas e as favas pendiam abundantes e apetitosas, expondo-se verdejantes aos seus olhos e a executarem perante si insinuantes danças trocistas, arremedando-lhe que seria com elas que ele haveria de embirrar, quando as encontrasse no seu caldo, num dos próximos entardeceres. Acabou por se desinteressar das manipulações da lavoura, desdenhando a fraca cooperação e má vontade das sementes e dos bolbos, e resolveu investir e aplicar-se na ciência de escamar batráquios e escalpelizar as rãs que coaxavam nas poças das cercanias.

Tinha dado um passo no conhecimento, um pulo de gigante no crescimento, e as pernas permitiam-lhe agora saltar sebes e muros com ágil destreza.

Daí à elaboração de misturas corrosivas no laboratório de química e de quase ter feito desaparecer parte da bata e das calças do mestre-escola foi um pequeno passo, mas que lhe abriu os horizontes da não existência de impossíveis — Se uns bárbaros pedantes, com umas patorras de assustar besta campestre, ousaram espezinhar as encarquilhadas crateras dos românticos luares, envergando uma ridícula vestimenta compacta, e revelar isso ao mundo em directo, numa caixa de verídica incredibilidade para as cépticas mentes de então — o Manuel viu nisso a prova de que os improváveis fazem parte da mente humana e que mandando estes às malvas os sonhos equiparam a velocidade da luz e são capazes de chegar às estrelas.

Assim, resolveu, utilizando combinações de cristais integrados das velharias informáticas que lhe iam caindo entre as mãos, desenvolver uma escada em madeira de pinho virtual, capaz de demonstrar que a matéria e as tecnologias da ilusão coabitam necessariamente e que uma não faria sentido sem a outra.

A escada ia crescendo degrau a degrau com a robustez que a vista parecia querer desmentir mas em que a comprovação física e motora demonstravam o contrário.

Subindo, começou por se ver de cima os arbustos mais diminutos e as barracas com telhado de chapas de zinco ondulantes, não tanto pelo desenho do molde, mas antes pela acção do vento forte, que bastas vezes as fazia retorcer ao levantarem-se, parecendo querer, em lugar de servirem de abrigo contra os caprichos do tempo, transmutar-se em teimosas e convulsas lâminas planas, sibilantes e descontroladas, capazes de tudo seccionar na sua libertina fúria voadora. Uma demonstração mais, segundo o Manuel, que nem todos os pregos seguram os imprevisíveis equilíbrios da natureza.

A escada continuava a crescer atingindo o plano das grandes florestas e, por fim, deixando para baixo os picos nevados das mais altas cordilheiras. O movimento das formigas no solo era agora, para o Manuel, um puro exercício da imaginação.

Um pássaro mecânico, assustado por dar de face com tão intrigante e imprevisível farol, jamais referenciado em cartilha aérea alguma, deu um safanão na rota, virou picando para estibordo e com uma das suas rígidas e compridas asas, seccionou a direito, ao meio e por aí abaixo, um número impreciso de degraus desde o topo da obra-mestra do Manuel.

Catrapuz…puz…puz! … E o artesão viu-se pendurado, feliz acaso da sorte, por um rasgão das calças, que o segurou num dos lanços poupados ao descalabro.

Atordoado, recompôs-se, lamentando a má sina e maldizendo o pássaro intruso que ousara passar por ali, logo no preciso momento em que estava prestes a vencer a meta.

Meteu mãos ao trabalho e recomeçou a obra. Como os utensílios tinham desaparecido e não lhe restavam mais do que as traves laterais e uns pedaços de lances que quase por milagre haviam resistido à derrocada, meditou, calculou, e por fim resolveu experimentar um novo processo, misto de engenharia química e de mecânica construtiva: segundo o seu raciocínio, se utilizasse os dentes como fazem os esquilos poderia raspar pequenas lascas da madeira das traves. Desenvolvendo uma espécie de salivite endurecedora moldaria tubos consistentes que após devidamente solidificados usaria como novos lanços de escada. Era o génio a demonstrar que os impossíveis só existem na preguiça.

O seu único temor centrou-se na lentidão da empreitada e no defeito de um ou mais tubos, que não resistindo ao peso, quebrassem e o atirassem, como de facto aconteceu umas quantas vezes, para uma data de lanços mais abaixo.

O evidente é que apesar dos contratempos a missão avançava, senão a olhos vistos, pelo menos em nebulosas e voláteis formas, até que, e por fim, o Manuel acaba o tão esperado último lance que lhe permitiria subir ao cimo das nuvens…

… E qual não foi o seu espanto, quando, de pé no último degrau, descobriu que o sol tinha deixado de existir.

De

Moisés Salgado