PONTO DE FUGA

Procuro-me, em tudo, mas não sei nem por onde começar. Minha visão não está leitosa. Ninguém roubou meu carro. A incerteza que não sara. Leio o mago, pensador sem ponto, sem pouso, pobre desventurado, sem fé. Ainda bem que ainda enxergo meus arredores. Neles, há o que nele não há. Uma dor, sim. Poesia que fere, mas acalenta.

Aqui, somente o que me fere, arranha, posso sentir. Desgarro-me de tudo e de todos. Disfarço-me de incluído, pontuando uma muito vaga e enganosa presença. Pensador com pontos e tudo. Mas, de que me adianta. Também sou desventurado. Solidão: eis o lugar que deveria sossegar-me. Como criar coragem para encarar o silêncio? Sucumbir. Até isso requer a tal da coragem.

Molambento, sem poder algum, esquivo-me dos flertes. Dominado por uma completa incapacidade de reação, sou trapo, come-e-dorme, atormentado com arredores visíveis, amedrontado por expectativas tenebrosas.

Caminhando, sem rumo, sou retilíneo. Não desejo esforçar-me com escolhas. Nada de virar à esquerda, muito menos à direita. Sigo, reto, fugindo, ou tentando fugir. Olho para cada veículo que passa, até que virem pontinhos no horizonte. Eles seguem, eu sigo, anônimo e desconhecido. Já não posso parar. Minha rua, meu bairro, tudo vai ficando para trás. Não estou disposto a mudar.

Minhas pernas acusam o cansaço, e fraquejam. Começo a respirar pela boca e pelo nariz. O esforço é grande, mas ainda desprovido de sentido, de objetivo, destino. Minhas referências vão se perdendo, por completo. Ninguém, nada me persegue. Como é frustrante.

Nos subúrbios da cidade, bem distante, lugar ermo se forma e me captura. Lugar estranho. Adentro por suas ruelas. Não sei mais por onde sair. Estou pensando na minha preservação, agora. Tenho medo. Isso é bom sinal! Um instinto adormecido que me atenta. Era dele mesmo que me separara, há tão pouco.

Em meio a entulhos, desviando de um córrego malcheiroso, caio noutra ruela, ainda mais desconhecida.

Penso em começar a empreender alguma mudança de rota, corrigir o rumo. Quem sabe, voltar para casa? Mas, o caminho já está muito confuso. Nada por aqui tem prumo. É um lugar que parece amarrar-me, por cordas, ao centro. Tensionadas ou afrouxadas, davam-me uma liberdade ilusória e circular. Estou preso nesse negócio.

Infelizmente, num dos becos adentrados, não enxergarei mais saída alguma. A situação vai piorando. No sentido contrário, vejo um grupo de jovens suspeitos, mal encarados. Os caras têm pinturas por todo o corpo, carregam correntes, usam pulseiras de couro e metais. O conjunto de fatores (indumentária, momento, lugar) é desalentador. Eles se aproximam, rapidamente. Meu desejo de preservação aumenta. Isso é bom!! Toda a minha angústia vazia é traída por este simples relembrar da vida, da família, de tudo. Fala-me, ainda, do Amor esquecido. Estou encorajado a ter medo. Parece estranho.

Convido, então, meus cavaleiros. Que venham me socorrer. Estou, agora, ladeado pela astúcia, criatividade, memória, e coisa e tal. Todos perfilam comigo.

O encontro será inevitável. Do outro lado, os adversários nem percebem que estou acompanhado. Coitados. Eu me sinto confiante. Todavia, eu não contava com este cavaleiro retardatário que resolve dar o ar da sua graça. Chega esbaforido, trôpego, empurrando a todos do pelotão. Posiciona-se à minha frente. Diz-se tocado pela bravura, ao carregar um pesado espelho nas costa. Reflete-se, naquela plana superfície, um covarde desfalecido. Alegando que até o mais traiçoeiro dos aliados mereceria ajuda, ele me grita palavras fortes. Tenta reavivar-me, como um ser grandioso e humano.

Percebo que uma velha ponte de madeira nos acolherá. Tudo é muito rápido. Já estamos sobre nossa estreita passagem. De cada lado, despenhadeiros esculpidos pela mais lenta erosão. As tábuas do piso estão meio soltas. Não há proteção lateral, nem corrimão. A ponte é muito elevada, uns setenta metros. Sua estrutura balança com as rajadas de vento. Somente uma dura batalha me aguarda. Será mortal, talvez.

No susto, desconcentrando-me do iminente embate, virei-me. O gesto repentino já vai derrubando uns aqui, outros ali, que despencam. Provoco baixas no grupo. Alguns outros pobres coitados se engancham, pegajosamente, em minhas costas. Dou uma cotovelada, chacoalho o corpo. Tento me livrar do fogo amigo, de quem me ataca, como inseto grudento.

Estou num caminho sem saída, sem volta. Pois, atrás de mim, os companheiros fecham todos os flancos, e começam a me empurrar.

O pisar de tantos guerreiros agrava a instabilidade, que me sugere angustiante escolha. Sinto-me tentado. Meus cavaleiros me aconselham, de forma atabalhoada. São emissários do bem e do mal. Não estão, aqui, por acaso. Alegam que, exatamente por isso, foram convocados. Meus equívocos dicotômicos os chamaram para mim.

Do outro lado, adversários totalmente incógnitos. São entes de uma história que talvez nunca os identifique, nem reconheça.

Meus abismos balançam, de um lado para outro. Restou-me pouco, muito pouco. Somente escolher.

Aluísio Azevedo Júnior
Enviado por Aluísio Azevedo Júnior em 25/01/2013
Reeditado em 08/02/2013
Código do texto: T4103691
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